Ouro Preto – A esquina das ruas Bernardo Vasconcelos e dos Paulistas, no Bairro Antônio Dias, em Ouro Preto, na Região Central de Minas Gerais, tornou-se, ao longo do tempo, um ponto de parada obrigatória para moradores e visitantes. Enquanto os primeiros, a qualquer momento, olham para o alto e fazem uma oração e se benzem, os demais admiram, no topo da uma residência, o oratório envidraçado dedicado a Nossa Senhora do Bonsucesso.
Nos últimos dias, no entanto, o ponto turístico e devocional, localizado a poucos metros da Matriz Nossa Senhora da Conceição, esteve envolto em polêmica: a imagem no oratório particular ficou de cabeça para baixo – e muitos creditaram a uma frustração política diante do resultado da eleição presidencial.
Na manhã desse domingo (22), a questão foi esclarecida pelo professor de artes, segurança do trabalho e desenho de joias, Frederico Lamounier Ferrari, de 63 anos, viúvo, um dos proprietários do casarão no qual reside com a mãe, Afonsina Lamounier Ferrari, de 95.
Segundo ele, a imagem de Nossa Senhora do Rosário ficou de cabeça para baixo devido à descupinização que ele mesmo vem fazendo no imóvel.
“Aqui em Ouro Preto está uma situação horrível de cupins, e temos que matar os insetos, pois as casas são antigas. Ao jogar o produto químico no oratório, o suporte da imagem, também de madeira, virou, e a santa caiu. Foi isso que aconteceu”, afirma o professor, mostrando uma pequena parte quebrada na coroa da imagem e uma parte destruída, na porta do oratório, pelos cupins.
Assim que terminar o serviço de descupinização, Frederico voltará com a imagem para o local. E bastou que ele mostrasse à equipe do Estado de Minas onde fica originalmente a peça sacra para que vizinhos se enchessem de alegria.
“No início ficamos chocados com a imagem de cabeça para baixo, mas sei que ele não fez por mal. Somos amigos”, disse a dona de casa Neuza Marques, de 73, moradora da Rua Bernardo Vasconcelos.
O disse-me-disse sobre a posição da imagem correu de boca em boca e ganhou as redes sociais. “Não gosto de fofoca, ainda mais com vizinhos. As pessoas comentaram, e não procurei desmentir. Deixei que falassem”, ironiza Frederico. A conversou correu solta, e o teor era de que, decepcionado com a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro à reeleição, o professor teria ‘castigado’ a santa.
“Disseram até que era Santo Antônio, e aviso que não estou com intenção de me casar de novo”, acrescentou, com bom humor, o professor aposentado do Instituto Federal Minas Gerais (IFMG).
A referência ao santo casamenteiro decorre das histórias, no interior mineiro, de que, caso um pedido de matrimônio não seja atendido por Santo Antônio, ele será colocado de cabeça para baixo, ficará amarrado um tempo ou irá para a panela, cozido no feijão. Reza a lenda que seria esse, em épocas remotas, um ato de vingança.
A verdadeira dona do oratório
Embora o oratório seja dedicado à Nossa Senhora do Bonsucesso, a imagem apresentada nos últimos oito anos, na casa de Frederico, é a de Nossa Senhora do Rosário, em gesso. A mudança se deu quando alguém passou na rua e atirou uma pedra no oratório, quebrando a vidraça e deixando a família preocupada, triste e abalada.
“Devido ao perigo, resolvemos tirar a imagem de madeira de Nossa Senhora do Bonsucesso, do século 18, e guardá-la em casa”, conta o professor, que manteve, dentro do oratório, a pedra lançada pelo desconhecido.
Na época, a agressão foi comunicada ao escritório local do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pelo tombamento do Centro Histórico de Ouro Preto desde 1938. “Infelizmente, nenhuma providência foi tomada pelo Iphan”, lamenta Frederico.
Também no oratório fica uma segunda imagem, a de Nossa Senhora das Mercês. Olhando para o oratório e depois abraçado à mãe, Frederico lembra que a “confusão” o pegou num momento delicado: há um ano, ele perdia um sobrinho, de 21 anos, que morreu num acidente de veículo.
Emoção e respeito Ao ver a imagem de Nossa Senhora do Bonsucesso, a original, sendo colocada no oratório, a comerciária Denise Nass se emocionou. “Fico feliz demais. As pessoas passam na frente, rezam, fazem o nome do Pai. Graças a Deus que a santa voltou”, disse a jovem catarinense, que trabalha perto do oratório.
O músico Gustavo Barbosa também abriu o sorriso e disse que ficou muito triste com a situação, enquanto o guia de turismo Cláudio Luiz Rocha não gostou de nada do que presenciou. “Passo aqui há 60 anos e vejo a imagem exposta. O mínimo que ela merece é respeito.”
Proteção contra ‘fantasmas’ no século 18
Na fachada da residência, na Rua Bernardo Vasconcelos, está uma placa do circuito Museu Aberto – Cidade Viva, identificando a construção do final do século 18, “que apresenta, na junção das fachadas principal e lateral, cunhal em quilha de navio e possui oratório particular”.
Sobre o oratório, outra placa informa: “Conta a tradição que a construção de oratórios nas fachadas das casas foi permitida, pela Igreja, para acalmar o pavor que dominou a população de Vila Rica (antigo nome de Ouro Preto), no início do século 18. Vultos sinistros encapuzados, que desciam os morros, à noite, para cometer assaltos e roubos, eram confundidos com fantasmas, pelos moradores de Vila Rica”.
Ouro Preto teve 14 oratórios, desde os tempos de Vila Rica e só restaram três no Centro Histórico, entre eles o existente na Casa do Vira-Saia, na Ladeira de Santa Efigênia. O sobrado do século 18 pertenceu ao lendário Vira-Saia, um personagem dos tempos da exploração do ouro, visto por alguns como um “Robin Hood” das Gerais e muito audacioso para enganar a Coroa portuguesa.
Partos Em entrevista ao EM, a arquiteta urbanista Deise Cavalcante Lustosa, especialista em cultura e arte barroca, contou que os oratórios foram os primeiros pontos luminosos na antiga Vila Rica, tendo cada um sua função.
“O oratório do Bonsucesso tinha como papel evocar Nossa Senhora da Boa Hora para um bom parto das mulheres da vizinhança. Dessa forma também era comunicada a vinda de um novo morador”, afirmou.
Também especialista em conservação e restauração de monumentos e conjuntos históricos, Deise Cavalcante explica que acima do oratório havia uma sineta a qual os moradores tocavam durante o parto. “Essa tradição foi se perdendo, e os oratórios, com o tempo, sumiram.”