*Esta reportagem foi atualizada em janeiro de 2023
Aos 40 anos, em 1971, a fotógrafa Claudia Andujar teve um encontro que mudou o rumo de sua vida.
Nascida na Suíça, Andujar já vivia no Brasil havia 16 anos, tendo construído uma carreira de sucesso no fotojornalismo.
Mas naquele início da década de 1970, sua profissão tomou outra direção quando ela fotografou os indígenas yanomami de Roraima para a revista Realidade, que fazia um especial sobre a Amazônia. Na época, o povo yanomami era relativamente isolado.
A viagem não foi o primeiro contato dela com as populações nativas do Brasil. Amiga de Darcy Ribeiro, ela visitou por orientação dele a Ilha do Bananal em 1958, quando fotografou o povo Karajá – imagens que foram publicadas pela revista Life. Claudia também visitou os Bororo e os Xikrin Kayapó.
Mas foi o encontro com os yanomami que a marcou definitivamente. A fotógrafa se envolveu com a comunidade para o resto da vida, voltando inúmeras vezes para a região e mais tarde passando a militar em defesa dos indígenas.
Sobrevivente do Holocausto - parte de sua família foi assassinada nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau - Andujar foi profundamente tocada pelo sofrimento do povo e pela devastação gerados pelo contato dos brancos com o povo indígena.
Mas ela também retratou a vida e a potência da cultura, fotografando a alegria das festas e a beleza do cotidiano.
Hoje com 91 anos, ela disse ao jornal O Globo que tem a esperança de que o novo governo dê atenção para a tragédia vivida pelos indígenas.
O Ministério da Saúde declarou neste mês Estado de Emergência de Saúde Pública na terra indígena yanomami, em Roraima, por causa do aumento de mortes por desnutrição e malária. Após assumir, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e uma comitiva de ministros visitaram a terra indígena e as imagens de crianças e adultos em estado grave causaram consternação no mundo.
"Eu quero acreditar que o Lula vai conseguir e que vai ter interesse em defender os povos indígenas do Brasil. Eu espero que ele ajude o povo yanomami a ficar tranquilo, porque eles sofrem há muitos anos com a invasão das suas terras por garimpeiros" disse a fotógrafa ao jornal carioca.
"Acho que o mundo tem que ser mais igualitário e o governo brasileiro poderia ser um exemplo ao dar essa possibilidade aos povos indígenas no Brasil", afirmou.
Testemunha da destruição
Nos anos 1970, Andujar decidiu abandonar São Paulo e foi viver na Amazônia – morando entre os Estados de Roraima e Amazonas e se dedicando integralmente ao trabalho com indígenas até 1976.
Entre 1971 e 1977, fez uma série de fotografias a partir de sua convivência com os yanomami na região do Catrimani. Acompanhava o cotidiano na floresta e, na maloca (habitação coletiva), retratava as pessoas em suas atividades diárias e durante os rituais xamânicos – e foi passando cada vez mais tempo na floresta.
Ela também foi testemunha de um rastro de doenças, violências e poluição resultantes dos conflitos de terras gerados pelo garimpo e pelos "planos de desenvolvimento" da Amazônia do governo militar. Comunidades indígenas inteiras foram aniquiladas, levando a fotógrafa iniciar uma batalha para ajudar o povo em sua luta por sobrevivência.
Em plena ditadura militar, ela acabou enquadrada, em 1978, pela Lei de Segurança Nacional. Foi expulsa do território indígenas pela Funai e voltou a São Paulo, onde começou a organizar um grupo em defesa da criação de uma reserva yanomami – a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (hoje Comissão Pró-Yanomami).
A demarcação da reserva só foi acontecer em 1992, após a redemocratização do país e às vésperas da Rio-92, a conferência-geral da ONU sobre o clima realizada naquele ano no Brasil.
Ao assumir a coordenação da campanha pela demarcação da terra indígena, foi diminuindo seu trabalho fotográfico e dando força a seu ativismo político. Mobilizou ONGs nacionais e estrangeiras, participou de programas de saúde e educação na terra indígena, levantou dinheiro para a causa e viajou pelo mundo para denunciar o genocídio de índios.
Suas fotos se tornaram forte instrumento de luta política. Um de seus trabalhos mais conhecidos é uma série de fotos numeradas em várias regiões de cadastros de saúde e vacinação.
A beleza da vida
Mais do que retratar o sofrimento e a luta, Andujar capturou a alegria das festas, a caça, cenas do dia a dia.
Ela fez amizade com o missionário Carlo Zacquini, que vivia há muito tempo entre os yanomami, e passou a acompanhar viagens, festas e expedições de caça.
"É claro que cortar um animal é algo sangrento, mas, não sei, acho que já me acostumei com isso, não me choca mais e nem acho estranho. É o jeito que as coisas são", descreveu ela, na época, em áudio gravado na mata. "Para falar a verdade, estou há tanto tempo com os índios que não acho mais nada estranho. Sempre olho e tento entender. As coisas são do jeito que são."
Os anos de dedicação de Andujar ao seu trabalho fizeram com que seu interesse jornalístico se transformasse em "interpretação radicalmente original da cultura (yanomami)", segundo Thyago Nogueira, curador de uma exposição com cerca de 300 obras do seu acervo exibida no IMS (Instituto Moreira Salles) em São Paulo, entre 2018 e 2019, e depois no Rio em 2020.
"Criamos uma nova identidade para eles, sem dúvida, um sistema alheio a sua cultura", disse a fotógrafa em 2018 ao IMS. "São as circunstâncias desse trabalho que pretendo mostrar por meio das imagens feitas na época. Não se trata de justificar a marca colocada em seu peito, mas de explicitar que ela se refere a um terreno sensível, ambíguo, que pode suscitar constrangimento e dor."
Para Nogueira, um dos conjuntos de fotografias mais impactantes feito por Claudia nos anos 1970 é o registro das festas reahu – cerimônias complexas que misturam rituais funerários e ritos que reforçam a aliança intercomunitária, marcado pela fartura de comida.
Antes de registrar os rituais, ela fez experimentos fotográficos em São Paulo, testando lamparinas, flashes, e filmes infravermelhos, que depois usou na mata.
Sua obra também é repleta de retratos das centenas de pessoas que conheceu – crianças, jovens, adultos –, feitos com luz natural e que trazem um ar de intimidade.
A fotógrafa também propôs aos yanomami que eles mesmos representassem sua cultura e seu universo por meio do desenho de mitos e cenas do cotidiano. Em 1974, com a ajuda de Zacquini, levou à mata papéis e canetas hidrográficas. Cerca de 30 desenhos originais resultantes desse projeto fizeram parte da mostra no IMS.
Sobrevivente
A suíça Claudia cresceu na região da Transilvânia, entre a Romênia e a Hungria, com sua família paterna, de origem judaica.
Durante a Segunda Guerra Mundial, essa parte da família foi assassinada nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau, e Claudia conseguiu fugir com a mãe de volta para a Suíça em 1944.
Depois emigrou para os Estados Unidos, onde foi morar com um tio. Lá, trabalhou como guia na sede da ONU e começou a se interessar por arte. Casou-se pela primeira vez, com Julio Andujar, refugiado da Guerra Civil Espanhola, mas se separou meses depois, quando ele foi enviado para a Guerra da Coreia.
A carreira de fotógrafa começou por volta de 1955, quando veio ao Brasil visitar a mãe. Sem falar português, ela decidiu ficar. Ao longo da carreira, produziu um acervo de mais de 40 mil imagens.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.