Ultrajante. Em visita a El Paso, na fronteira com o México, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, usou esse termo ao citar os atentados terroristas de ontem, em Brasília. A invasão ao Congresso Nacional, ao Supremo Tribunal Federal e ao Palácio do Planalto estarreceu os norte-americanos e o mundo, 732 dias depois de simpatizantes do republicano Donald Trump atacarem o Capitólio, em Washington, deixando cinco mortos. "Condeno o ataque à democracia e à transferência de poder no Brasil. As instituições democráticas no Brasil têm nosso total apoio e a vontade do povo brasileiro não deve ser minada. Estou ansioso para continuar a trabalhar com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva", escreveu Biden, pouco depois das 20h de ontem.
Mais cedo, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, também alertou que "usar a violência para atacar instituições democráticas é algo sempre inaceitável". A deputada democrata Alexandra Ocasio-Cortez prestou solidariedade às autoridades brasileiras e instou o governo Biden a parar de "conceder refúgio" ao ex-presidente Jair Bolsonaro na Flórida. A comunidade internacional reagiu, de forma imediata e consoante, às cenas de barbárie em Brasília. Líderes de vários países reprovaram, nos mais fortes termos, os atentados. A pedido do Correio, analistas políticos dos Estados Unidos traçaram uma comparação entre os episódios de ontem em Brasília e a invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021.
Semelhanças
Professor do Departamento de História da Universidade de Denver (Colorado), o brasileiro Rafael R. Ioris vê um paralelo muito forte entre os atentados terroristas de ontem, em Brasília, e o ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. "Há semelhanças, tanto do ponto de vista empírico, com a invasão das forças da extrema-direita brasileira e norte-americana às instituições democráticas. Esses atores tiveram grande cooperação nos últimos tempos, partindo de uma mesma cartilha. A proximidade dos ex-presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump é explicitamente a demonstração da partilha de uma agenda neofascista", explicou.
No entanto, Ioris também aponta diferenças interessantes entre os dois ataques. "O que houve nos EUA foi um presidente que não queria sair do poder e que ainda controlava as forças nacionais. A polícia do Distrito de Colúmbia tentou reprimir os manifestantes, mas foi subjugada por eles. No caso do Brasil, é o contrário. Lula está no poder e, claro, parece que houve conivência da Polícia Militar do Distrito Federal. Mesmo omissão ou concordância. Mas, neste caso, o governo federal está nas mãos de progressistas e a neodireita se recusa a reconhecer essa vitória", acrescentou.
Ioris considerou que os atentados terroristas de ontem são "gravíssimos" para a imagem do Brasil no exterior. "A crise da democracia ocorrida nos últimos anos no país tem sido um assunto de grande relevância internacional. Lideranças formais e políticas, e líderes de governos, assim como organizações democráticas progressistas do mundo inteiro, têm acompanhado esse processo de destruição da democracia brasileira. A última eleição foi de muito interesse para a opinião pública internacional. Havia um grande entusiasmo de que, com a volta do presidente Lula, veríamos a possibilidade de reconstrução das instituições democráticas", explicou.
O historiador político James Naylor Green, professor da Brown University (em Rhode Island) e co-coordenador nacional da Rede dos Estados Unidos pela Democracia no Brasil, concorda que "o ataque aos Três Poderes em Brasília lembra muito a invasão ao Capitólio". "No Brasil, a extrema-direita faz a mesma coisa que a ultradireita norte-americana: recusa-se a reconhecer o processo democrático e comete atos de violência inaceitáveis", disse à reportagem.
Green aposta que a invasão ao Congresso Nacional, ao STF e ao Planalto enfraquecerá o bolsonarismo. "Os atos antidemocráticos mereceram repúdio nacional e internacional. A base de Bolsonaro no Congresso estará em uma situação muito complexa, caso os legisladores não denunciem totalmente os simpatizantes do ex-presidente. O próprio Bolsonaro terá que denunciar o que aconteceu e se distanciar desses atos", comentou. Ele não descarta uma investigação muito mais profunda da Polícia Federal, um sinal de que tais crimes não serão tolerados. "Foi uma invasão horrível."
Manual
Para o também brasilianista Kenneth R. Maxwell — professor aposentado da Universidade de Harvard e fundador do Programa de Estudos sobre o Brasil —, o que se viu ontem em Brasília foi um "atentado ultrajante à democracia brasileira". "Ela veio pouco depois do segundo aniversário da invasão ao Capitólio por baderneiros pró-Trump e seguiu o mesmo manual. Assim como em Washington, a polícia em Brasília esteve praticamente ausente e os poucos agentes ficaram sobrecarregados. O vandalismo no Congresso brasileiro é estranhamente parecido com o ocorrido na capital dos EUA", admitiu.
Maxwell apontou outra coincidência: a negação de uma vitória eleitoral. "Não por acaso, Bolsonaro se instalou na Flórida. Isso é um grave choque para o sistema democrático e demonstra quão difíceis serão os primeiros meses de governo Lula."
Professor de direito e de ciência política da Universidade de Yale (em New Haven, Connecticut), Bruce Ackerman lembrou que Blinken condenou os ataques em Brasília. "Como consequência, Jair Bolsonaro não deveria ter a permissão de sair dos EUA e retornar ao Brasil, a fim de inflamar ainda mais esse violento atentado à democracia", afirmou, por e-mail. Ele defende que Lula solicite a detenção e a deportação do ex-presidente, para que um processo judicial investigue a cumplicidade de Bolsonaro nas agressões às "bases da democracia".
Sean T. Mitchell, professor de antropologia e diretor do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Paz e Conflito na Universidade Rutgers (em Newark), assegura que há "clara coordenação" entre a extrema-direita dos EUA e a do Brasil. "Não sabemos como a insurgência foi planejada, mas não seria surpresa vermos figuras próximas a Steve Bannon (ex-estrategista de Trump) envolvidas. Sabemos que Anderson Torres (secretário de Segurança do DF, exonerado ontem) viajou para Orlando. Também que Eduardo Bolsonaro foi a Washington, em 5 de janeiro de 2021." Segundo ele, os ultradireitistas do Brasil e dos EUA são parte de uma rede internacional que coordena estratégias transfronteiriças.