A religiosidade é algo que remete ao antigo distrito. Foi mantida uma distância similar entre a Igreja de São Bento e a Igreja das Mercês, bem como a posição das casas em relação a elas. No entanto, os projetos arquitetônicos de ambas, desenvolvidos pela Arquidiocese de Mariana, não lembram os antigos templos.
Missas já foram celebradas, bem como procissões que tradicionalmente mobilizavam os moradores pelas ruas. Segundo a Fundação Renova, é uma forma de estimular a manutenção dos laços comunitários e promover ambientação no novo distrito.
Outros eventos têm sido realizados aproveitando as obras já concluídas. Jovens puderam participar, por exemplo, de atividades esportivas na quadra da escola. Na praça central, rodas de viola são organizadas e, no Dia das Crianças, um telão foi montado para uma sessão de cinema.
Mônica, no entanto, não considera que os modos de vida estão sendo respeitados. Segundo a representante da Comissão de Atingidos, o projeto não é do atingido e sim dos arquitetos e da Fundação Renova.
"A gente só participa de uma fase. Nem nós nem a Cáritas, que é a responsável pela nossa assessoria técnica, foi ouvida para o projeto estrutural, para o projeto de eletricidade, para o projeto hidráulico. E a grande maioria das famílias cansou de ficar questionando, de ficar brigando e aceitou do jeito que a fundação quis. Temos dificuldade até com coisas simples como o fogão a lenha, que é muito importante para nós. Eles querem colocar fogão a lenha pré-moldado e ele não aguenta o nosso uso", critica.
Horta e animais
Embora o verde apareça no horizonte, ele está ausente no interior das ruas da nova Bento Rodrigues, o que deixa o visual ainda mais distinto daquela comunidade rural soterrada pelos rejeitos de mineração. Não há árvores nas vias. A Fundação Renova promete que elas ainda serão plantadas. Além disso, com altos muros de concreto, nem os gramados dos quintais das casas estão visíveis aos olhos de quem caminha pela comunidade.
Apesar do aspecto mais urbano, a retomada do cultivo de hortas ainda é um desejo de muitos atingidos. Por outro lado, a maioria já decidiu que não irá criar animais.
"Quase todos querem lá um pé de jabuticaba, um pé de mexerica, uma hortinha, mas o galinheiro não. Tinha muito cavalo criado solto e o pessoal decidiu que não quer mais porque traz carrapato. Há uma autorregulação que as próprias famílias estão trazendo pra gente", diz Alfredo Zanon.
Diante da situação, ainda não há uma definição sobre o destino dos animais que foram resgatados e que hoje se encontram em uma fazenda sobre a guarda da Fundação Renova. Alguns atingidos avaliam que ficaram sem saída. Apesar dos terrenos serem maiores, eles seriam menos aproveitados porque possuem uma maior inclinação, diferente do antigo distrito que ficava em uma área plana. Essa característica dificultaria tanto o cultivo de horta como a criação de animais.
Com a casa pronta, o operador de máquinas Antônio Fernando da Silva, de 52 anos, não crê que terá espaço para sua horta. Ele explica que o terreno foi dividido com uma de suas irmãs e o quintal ficou bem menor do que era na casa onde vivia. "Não vai poder criar galinha nem mais nada do que tinha na roça. Tinha horta. Aqui não vai ter esse espaço. Não vai ter não".
Mas o espaço não é o único fator. Mônica explica que, no antigo Bento Rodrigues, eles faziam captação de água bruta. Agora todo o abastecimento será canalizado e administrado pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Mariana (SAAE), o que aumentaria muito os custos da criação de animais.
"Precisaremos pagar para irrigar as plantações, criar uma vaca, um porco, fazer limpeza de curral, do chiqueiro. A água bruta não vai ser restituída".
Um possível aumento dos custos mensais vem gerando preocupações para as famílias segundo a integrante da Comissão de Atingidos, pois acredita-se que as novas casas demandarão maior investimento em manutenção. Além disso, há o receio de que o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) seja bem superior.
José do Nascimento de Jesus, outro integrante da Comissão de Atingidos, corrobora com a visão de Mônica. Aos 76 anos, Zezinho do Bento, como é conhecido, não crê na retomada do modo de vida que havia no antigo distrito. "A gente morava em um paraíso, sabe? E o que é paraíso? Eu tirava leite, eu fazia queijo, eu vendia leite, eu vendia queijo e eu comia. Hoje a gente tem que comprar tudo", lamenta.
Plano de mudança
O número de imóveis previstos sofreu alterações ao longo do tempo por motivos variados. Algumas famílias que viviam no distrito acabaram desistindo de esperar e aderiram a outra modalidade de reassentamento: escolheram um imóvel em uma localidade diferente ou receberam indenização em dinheiro. Restaram 196 famílias, incluindo novos arranjos que se formaram ao longo desses sete anos. São casos que envolvem, por exemplo, filhos que se emanciparam e saíram de casa ou casais que se separaram. Em 2020, uma decisão judicial assegurou o direito a moradia para os núcleos familiares constituídos após a tragédia.
Há pouco mais de duas semanas, a Fundação Renova anunciou a conclusão de todos os equipamentos públicos em uma cerimônia com a presença do prefeito de Mariana, Ronaldo Alves Bento. A última estrutura finalizada foi a Estação de Tratamento de Esgoto, que é tratada como um modelo moderno de sustentabilidade, de alta tecnologia e de baixa manutenção. O sistema não usa bombeamento e todo o escoamento ocorre por meio de gravidade. Além disso, não será necessário uso de produtos químicos e o tratamento ocorre com a decomposição da matéria orgânica através de bactérias e raios solares.
Segundo a Fundação Renova, a expectativa é ter cerca de 120 casas concluídas até dezembro e, a partir de janeiro, a entidade estará pronta para realizar a mudança dos primeiros moradores. Empresas que realizarão a mudança e a montagem de armários já estão contratadas. A Fundação Renova já divulga até previsão para o início das aulas na escola: fevereiro de 2023. "A mudança depende de cada um. Da nossa parte, estaremos aptos", diz Carlos Eduardo Tannus, diretor de infraestrutura da entidade.
No entanto, os moradores têm, desde 2016, um pacto coletivo para que todos se mudem juntos, apenas quando as obras estiverem 100% concluídas. Embora esteja com sua casa pronta, Antônio Fernando da Silva reitera a existência do acordo, mas também se diz ansioso para mudar.
"Já são sete anos. A gente pensava que ia sair mais rápido. Nesse tempo, a gente perdeu colegas e parentes. Não puderam nem conhecer a casa nova", acrescenta ele, que perdeu uma irmã recentemente.
Embora a Fundação Renova informe que cada atingido poderá definir sua data de mudança, a Comissão de Atingidos considera que há pressão e assédio sobre as famílias.
"Temos muitas casas ainda para serem construídas. As obras ficam expostas. E querem trazer as famílias para morar em um canteiro de obras. Onde fica a preocupação com a segurança? Sabemos que acidentes de trabalho podem ocorrer em obras. Como que você vai conseguir controlar as crianças? Como que você vai conseguir controlar trabalhadores? A gente vê tanta coisa ruim acontecer. Quem que vai garantir a segurança dessas pessoas?", questiona Mônica.
Para Sandra Quintão, de 50 anos, a Fundação Renova tenta dividir os atingidos. Ela cobra a construção do seu bar e diz que sequer recebeu um projeto.
"Fundei ele em 2000 e, depois de 15 anos, ele foi embora debaixo da lama. Já me ofereceram dinheiro, mas a gente quer voltar para as nossas origens. Saí de casa com uma menina de dois anos e meio. Minha menina hoje tem nove anos, está me passando no tamanho, e pergunta: 'mamãe, nós vamos voltar?'. Estou vendendo minhas coxinhas em uma pequena lanchonete que eu aluguei. Quero voltar. Bento Rodrigues não existe sem o bar da Sandra".
Para a Comissão de Atingidos, não é possível pensar em mudança sem que o comércio também seja instalado para atender às famílias.
A Fundação Renova afirma que apoia mais de 50 planos de negócio. "São comércios diversos. Padaria, mercearia, restaurante, bar, doceria, sorveteria", lista Luiz Ferraro, que atua na entidade como gerente geral de reparação integrada dos reassentamentos.
*O repórter e a fotógrafa viajaram a convite da Fundação Renova