Na madrugada de segunda-feira (31/10), o ônibus que levava Isadora* parou em um restaurante para que os passageiros pudessem comprar alimentos antes de seguir viagem em direção a Curitiba (PR).
Era para ser uma parada de aproximadamente 20 minutos, mas durou dois dias. "Quando o motorista desceu, ele ficou sabendo que alguns ônibus já estavam parados porque algumas rodovias haviam sido bloqueadas. E disseram que seria mais seguro se ele continuasse parado ali no restaurante", diz Isadora, de 26 anos, à BBC News Brasil.
Naquele momento, os bloqueios das rodovias estavam começando pelo país e aumentavam cada vez mais. O movimento foi organizado por manifestantes contrários à vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), eleito presidente da República no domingo (30/10).
A manifestação foi registrada em diversos Estados brasileiros. Nesta quarta-feira (2/11) o volume dos atos diminuiu, porém há lugares em que os bloqueios continuam, mesmo após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) para desobstrução das vias. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) afirma que tem feito ações para retomar a normalidade nas vias.
Em razão do movimento, inúmeras rodovias tiveram quilômetros de engarrafamentos. Isso trouxe diversos tipos de problemas em todo o país.
Pacientes ficaram sem atendimentos ou materiais necessários para seus tratamentos, diversos tipos de cargas não chegaram ao seu destino e veículos coletivos não puderam seguir viagem.
Muitos ônibus, como o que Isadora estava, ficaram parados e passageiros tiveram de suspender os planos para os dias seguintes até que conseguissem seguir viagem.
"Vários passageiros perderam dias de trabalho, inclusive eu. Alguns ainda tinham que seguir viagem para um outro destino, após chegar a Curitiba", comenta Isadora.
'A gente se sentiu com os direitos violados'
Isadora, que é analista de sistemas, retornava das férias quando pegou o ônibus em Caxias do Sul (RS) em direção à capital paranaense.
"O meu plano era chegar na manhã de segunda-feira, desfazer as malas e começar a trabalhar (em home office)."
Ela embarcou no domingo às 21h35. Por volta das 4 da manhã, o ônibus parou em um restaurante em uma rodovia de Papanduva (SC).
Quando soube dos protestos, Isadora e os demais passageiros acreditaram que fosse algo rápido. Segundo ela, outros ônibus também pararam no restaurante à espera do fim dos bloqueios.
"Ficamos na expectativa de que em algumas horinhas iriam liberar as rodovias", relembra.
Mas as horas passavam e nada parecia mudar. "Foi angustiante. A gente se sentiu com os direitos violados, porque não tínhamos o direito de ir e vir. Todo mundo ali tinha os seus compromissos e fomos impossibilitados por terceiros. Ficamos indignados quando percebemos que ninguém sabia quanto tempo tudo isso iria durar", relata Isadora, que avisou sobre a situação aos seus chefes.
Os passageiros dos ônibus que pararam no restaurante almoçaram, jantaram e fizeram outras refeições no estabelecimento.
"Era um gasto que o pessoal não esperava, mas não tinha jeito", diz. O comércio também era usado para carregar celulares, para banhos e outras necessidades básicas.
Enquanto alguns passageiros tentavam lidar com a situação da melhor forma, outros enfrentavam dificuldades.
"No meu ônibus tinha uma senhora que parecia ter Alzheimer. Me contaram que ela acordou e se perguntou onde estava, porque ela acreditava que estava em um quarto e perguntou: o que faço aqui? O pessoal não sabia exatamente o que ela tinha, mas todo mundo ficou preocupado e sempre passava pra ver como ela estava", diz Isadora.
"Um outro caso foi o de um moço que estava em um outro ônibus e contou pra gente que havia tido uma crise de ansiedade e uma crise de pânico. Ele disse que essa situação agravou muito o quadro dele, que até precisou ser resgatado para ser atendido por uma equipe de saúde. Depois do atendimento, ele voltou para o restaurante e parecia mais tranquilo", conta.
O próprio motorista do ônibus, segundo Isadora, também passava por problemas pessoais.
"Ele estava muito desesperado e nervoso. Ele tinha perdido um familiar, acho que o sogro, e queria retornar logo para Curitiba para encontrar a família. Mesmo com tudo isso, ele ainda tentou dar todo o suporte para os passageiros, a gente sabia que não era culpa dele."
Nesse período no restaurante, uma das situações que marcaram Isadora foi a solidariedade de uma mulher que levou doações.
"O pessoal ali até tinha condições de comprar comida no restaurante, mas foi muito bonito esse gesto dela. Ela levou pães de queijo e marmitinhas para o pessoal que estava parado."
O retorno a Curitiba
Na madrugada desta quarta-feira, o motorista decidiu retornar a Curitiba. "A gente estava dormindo e ele simplesmente falou: vamos embora. Eu não sei ao certo se ele tinha recebido permissão de algum superior ou se foi uma decisão dele."
Quando o ônibus seguiu viagem, por volta das 3h30, Isadora diz que sentiu medo. "Eu não sabia o que aconteceria nos bloqueios, se os manifestantes deixariam passar ou não."
Ela conta que até chegar a Curitiba havia quatro bloqueios no início da manhã desta quarta.
"A gente parou nos quatro. A cada parada os manifestantes vinham na porta do motorista para falar com ele. Não havia engarrafamento, mas tinha esses bloqueios ainda. Não sei exatamente o que o motorista conversou com os manifestantes, mas sei que ele conseguiu passar em todos."
"Em um desses, ouvi um manifestante questionando o motorista: mas quem não está deixando vocês passarem? Esse manifestante deu a entender que poderíamos ter passado antes, mas não sei se realmente conseguiríamos passar antes ou se era só uma jogada deles agora para parecer que não estavam bloqueando a rodovia antes."
O ônibus chegou em Curitiba por volta das 6h10 desta quarta. "Era uma viagem que duraria nove ou 10 horas e acabamos chegando dois dias depois."
"Mas a gente ficou aliviado quando chegou. Estava todo mundo muito cansado. Agradecemos ao motorista, porque ele se manteve com a gente o tempo todo e fomos embora."
Ao chegar em casa, ela descansou e depois começou a trabalhar. "Como não trabalhei nos dias anteriores, tive que trabalhar hoje (no feriado)", conta.
Sobre a paralisação, ela afirma que espera que a situação normalize o mais rápido possível.
"Eu não queria ter passado por isso e acho que ninguém queria. Foi a minha primeira experiência de imprevisto em uma viagem."
"O que mais me deixou brava foi porque eu acho injusto (o bloqueio das rodovias), porque eles pedem algo que não tem fundamento assim (sobre a pauta contra a eleição de Lula)", afirma.
"E se eles quisessem dar visibilidade ao ponto de vista deles, que não atrapalhasse a vida do restante da população", acrescenta Isadora.
*Nome alterado a pedido da entrevistada
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63493292
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