Agricultura

O passado comum de fundadores do MST e fazendeiros de soja de Mato Grosso

Ocupação do Centro Oeste por agricultores sulistas foi estimulada pela ditadura militar



Fazendeiros de soja de Mato Grosso e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) hoje estão em lados opostos do debate político.

Os grandes produtores de soja são um dos grupos mais fiéis ao presidente Jair Bolsonaro e viram sua influência política e econômica crescer exponencialmente nos últimos anos.

Já os sem-terra estão ao lado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um aliado do MST desde seus primórdios e que atendeu várias demandas do movimento em seu governo.

No passado, no entanto, várias das pessoas que formaram os dois grupos viviam situações bastante semelhantes: muitos eram agricultores pobres, filhos e netos de imigrantes europeus que perambulavam pelo Rio Grande do Sul em busca de terras para criar os filhos.

Como um mesmo contexto foi capaz de criar dois movimentos políticos antagônicos?

Esse é o tema do quinto episódio do podcast Brasil Partido, um podcast da BBC News Brasil, veiculado nesta quarta-feira (19/10) no site da BBC, no canal da emissora no YouTube e em plataformas de áudio como Spotify e Apple Podcasts e Deezer.

Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast aborda como pessoas de diferentes grupos sociais — como evangélicas, executivos do mercado financeiro e brasileiros que se identificam como pardos — se posicionam diante de conflitos políticos atuais.

O podcast busca ainda entender como os brasileiros chegaram ao atual grau de divisão na política e se há possibilidade de diálogo entre grupos divergentes.

Da Itália para o Rio Grande do Sul

MST
A professora Maria Salete Campigotto participou dos primeiros acampamentos sem-terra no Rio Grande do Sul

Uma das pessoas entrevistadas no episódio é a professora Maria Salete Campigotto, uma das primeiras militantes do MST.

Campigotto é neta de agricultores que deixaram a Itália rumo ao interior do Rio Grande do Sul em busca de melhores condições de vida. Mas não havia no Estado terras para todos imigrantes que chegavam.

Nos anos 1970, agricultores gaúchos sem terra começam a formar acampamentos para pressionar o governo por uma reforma agrária. Campigotto foi para um desses acampamentos, erguido numa fazenda no município gaúcho de Ronda Alta, e passou a participar das Comunidades Eclesiais de Base, que eram grupos organizados pela Igreja Católica.

O grupo era liderado pelo padre Arnildo Fritzen, ligado à Teologia da Libertação, uma corrente católica que interpreta a fé cristã à luz de problemas sociais como a pobreza e a desigualdade.

Não por acaso, Campigotto diz que, em seus primórdios, o movimento sem-terra tinha muitos símbolos cristãos: sinos eram uma ferramenta de comunicação entre os acampados, e uma cruz foi construída para simbolizar "o peso e a dificuldade" enfrentados pelos sem-terra.

Campigotto já conseguiu um pedaço de terra, mas nunca abandonou o MST. Aos 68 anos, ela segue visitando acampamentos e participando de projetos educacionais entre assentados.

"Já estou aposentada como professora estadual e, nas madrugadas, vou com um colchão nas costas e sem ganhar um centavo, porque é questão de militância mesmo trabalhar pela reforma agrária", afirma.

"A gente nunca deixa de ser sem terra, sabe?"

MST
Famílias sem terra acampadas na Fazenda Annoni, em Sarandi (RS), em 1985

Mas um acontecimento quase mudou a história da professora. Foi em 1981, quando estava acampada em Ronda Alta e a ditadura militar enviou ao local Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, para acabar com a ocupação.

Curió já era bem conhecido naqueles anos por ter sido um dos militares responsáveis pela repressão à Guerrilha do Araguaia, nos anos 60 e 70. Ela conta que Curió cercou o acampamento para forçar a dispersão do grupo.

Das cerca de 600 famílias presentes, ele conseguiu convencer 300 a migrar para Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso. Os demais se mudaram para uma área próxima, comprada pelo movimento graças a doações. Os acampados ficaram nessa área até serem assentados pelo governo gaúcho, em 1983.

MST
3º Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Brasília, em 1995

Ocupação do Centro Oeste

A migração de agricultores sem terra sulistas para o Centro Oeste foi incentivada pela ditadura militar.

A ideia dos militares era aliviar a pressão por terras no Sul e, ao mesmo tempo, reforçar a soberania brasileira na região. Uma das famílias que aceitou a missão foi a de Gilmar Dell'Osbel, também entrevistado pelo podcast Brasil Partido.

Ele tinha 8 anos de idade quando deixou o Rio Grande do Sul com a família, em 1972. Assim como a família de Salete Campigotto, os Dell'Osbel eram descendentes de italianos que se deslocavam pelo Rio Grande do Sul em busca de mais espaço para a família.

Até que um projeto de colonização fundado pelo pastor luterano Norberto Schwantes fez a família se mudar para Canarana, em Mato Grosso.

"Todo mundo falava que estávamos fazendo uma loucura. Sair para o Mato Grosso… até o nome Mato Grosso assustava as pessoas, e, na verdade, foi um passo em busca de um futuro melhor para a família", afirma.

Seguindo as orientações do pastor luterano, a família pegou um empréstimo no Banco do Brasil com juros subsidiados para comprar um lote de 400 hectares.

As primeiras famílias a chegar em Canarana trabalhavam em mutirão e dividiam os poucos equipamentos disponíveis.

"Meus pais derrubavam o cerrado com o trator e a gente ia catando de mão e fazendo um monte para depois queimar", conta.

Sindicato Rural de Querência
Gilmar Dell'Osbel tinha 8 anos quando deixou o Rio Grande do Sul rumo a Canarana (MT), onde sua família prosperou com o cultivo de soja

Até que um acontecimento deixou a família à beira da falência. Foi quando, depois de três anos de cultivo, o solo se esgotou e deixou de produzir. A família teve então de suspender as parcelas do empréstimo no Banco do Brasil.

"Nós fomos pra cidade trabalhar de pedreiro, a família toda. Não sabia nem como fazer, mas tinha de aprender para sobreviver", ele conta.

A situação só ficou confortável quando o Banco do Brasil passou a financiar o cultivo de soja naquela região, no início dos anos 80.

"Aí os negócios foram acontecendo. A gente, com muita luta, foi prosperando e comprando terra", diz.

Hoje Dell'Osbel tem cerca de 5 mil hectares de terra, que ele administra com dois sócios.

Junto com o sucesso econômico, também veio o poder político.

Getty Images
Grandes produtores de soja estão entre os mais fiéis apoiadores do presidente Jair Bolsonaro

Ele virou presidente do sindicato rural de Querência (MT) e se tornou um dos dirigentes da poderosa Associação Nacional dos Produtores de Soja (Aprosoja).

Hoje a Aprosoja é uma das entidades mais próximas a Bolsonaro. Segundo Del'Osbell, praticamente 100% dos filiados apoiam a reeleição do presidente.

"Eu vejo que em muitas obras, tanto ligadas ao setor agrícola, escoamento de produção, logística, infraestrutura, ele se dedicou bastante. E obras que estavam paradas, ele terminou", afirma.

Fronteira agrícola

Bolsonaro teve forte votação na maioria das regiões com produção de soja e na chamada fronteira agrícola, que são as áreas onde a floresta nativa tem dado lugar a pastagens e plantações.

O presidente se elegeu em 2018 prometendo paralisar as demarcações de terras indígenas — e cumpriu. Bolsonaro também agiu para combater o que chama de "excessos" de órgãos ambientais.

No governo atual, ficou mais difícil pra esses órgãos destruírem equipamentos apreendidos em operações contra o desmatamento ilegal, por exemplo.

Analistas afirmam que os discursos e atitudes de Bolsonaro explicam a forte alta nos índices de desmatamento na Amazônia nos últimos quatro anos.

Indagado se concordava com a correlação, Dell'Osbel diz que a destruição da floresta é promovida por pessoas que andam "fora da lei" e não fazem parte de sua categoria.

"Essas pessoas são favorecidas com esse discurso (de Bolsonaro), mas o produtor, ele sabe que, se ele fizer alguma coisa ilegal, ele é travado perante esses órgãos fiscalizadores, e ele não consegue tocar a atividade dele", afirma.

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Em 2021, soja foi o segundo produto que mais gerou receitas para o Brasil em exportações.

Dell'Osbel elogia as mudanças legais promovidas por Bolsonaro que facilitaram o acesso a armas para agricultores — uma das principais bandeiras eleitorais do presidente.

"Porque nós estamos na propriedade, longe da cidade. Às vezes até o sistema de segurança lá da cidade, a polícia ficar sabendo, o bandido já cometeu o crime e já está muito longe", diz.

Outro ponto positivo do governo atual, na visão dele, foi o abandono da política de criar assentamentos de reforma agrária.

"O que a gente vê na prática é que, quando o governo cria esses assentamentos, a maioria das pessoas vai lá, adquire um pedaço de terra e vende para ir para novas invasões", afirma.

Já Salete Campigotto, do MST, diz que a afirmação de Dell'Osbel é preconceituosa. Para ela, é natural que, ao longo dos anos, alguns assentados resolvam deixar os lotes e migrar para outras regiões.

Campigotto diz que Bolsonaro "é uma pessoa que não dá nem para descrever, dada a fragilidade humana". Ela diz esperar que, caso Lula vença a eleição, possa haver uma "distribuição de terra para quem tenha interesse em produzir alimentos saudáveis".

"É muito mais fácil o governo resolver o problema de fazer assentamento do que resolver as cidades abarrotadas de problemas."

"Por que não se investe esse dinheiro para comprar a terra e dar condições para que o povo possa trabalhar e viver melhor?", questiona.

Saiba mais sobre as duas histórias ouvindo o podcast no site da BBC, no YouTube ou nas plataformas Spotify e Apple Podcasts e Deezer.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63196408


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