O Brasil tem quase 63 milhões de pessoas vivendo em situação de pobreza, com uma renda familiar inferior a R$ 497 mensais, e 33 milhões de brasileiros em condição de extrema pobreza, sobrevivendo com R$ 289 mensais. Os dados são da Fundação Getulio Vargas (FGV). Se o recorte for afunilado para as unidades federativas, o Distrito Federal e 24 dos 26 estados têm mais da metade da população vivendo em condições de privação de direitos. Esses são os piores indicadores de pessoas em vulnerabilidade social no país desde 2012. Independentemente do resultado das urnas nas eleições de hoje, em que concorrem o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o próximo governo terá um desafio pela frente: promover soluções que permitam o acesso desses cidadãos aos direitos básicos.
Para Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil, o restabelecimento de políticas públicas é fundamental para o enfrentamento do cenário de abismo social em que o país se encontra. "Há um exercício de reconstrução em 2023. A descontinuidade de políticas que funcionam e têm resultado é como uma agressão, é a não preocupação com a sociedade. As políticas que funcionam bem podem ser aprimoradas, mas não dizimadas", explica.
A especialista defende que as políticas públicas deveriam ser responsabilidade do Estado, mas não necessariamente apenas do governo no poder. "Quando se pensa na construção do Bolsa Família, por exemplo, o programa (criado pelo PT) foi alimentado pelo Bolsa Escola, que teve a influência do governo PSDB. É desse jeito que se demonstra uma vontade de avançar, utilizando o que estava dando certo do governo anterior", lembra. "Quando chega um governo que parece que, intencionalmente, vai destruindo tudo, o impacto disso é muito grande. O que será que o próximo governo vai encontrar dentro dos órgãos públicos? Porque um governo nunca sabe qual a realidade do anterior, só sabe quando se começa a debruçar em cima para trabalhar", completa Kátia.
Intervenção do Estado
A história da formação do Estado brasileiro tem em sua base o furto de vários direitos humanos e sociais da população. Por esse motivo, a socióloga e professora do departamento de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB), Suylan Midlej, afirma que o Estado deve ser um forte promotor de políticas públicas. "Em tese, as políticas públicas são importantes para o desenvolvimento de um país e de uma comunidade, na dimensão micro da vida. Sem elas, dificilmente avançaremos em qualidade de vida. Tem que reparar esse dano social e econômico, sendo capaz de criar condições para que essa população também gere riqueza. Deve ser um Estado que pense na sociedade como um todo", ressalta.
Suylan acredita que, na próxima gestão, o presidente terá que considerar as complexidades do Brasil e consultar a sociedade. "É preciso atuar de forma a garantir que a gestão pública considere as complexidades do contexto brasileiro. No caso do gestor federal, precisa respeitar o sistema federativo e a autonomia entre União, estados e municípios, contemplando a realidade das cinco regiões do Brasil. É imprescindível que a gestão pública seja aberta à participação social. Essa é uma prerrogativa Constitucional."
A diretora executiva da Oxfam Brasil concorda que a participação social é uma das etapas fundamentais para uma boa construção de políticas. Aliás, segundo ela, essa capacidade de inclusão desenvolvida no país foi basdtante reverenciada internacionalmente. "Um dos processos brasileiros admirados fora do Brasil era o dos conselhos de participação pública. Eles são importantes porque criam políticas com as pessoas que vão utilizá-las", diz. E completa: "O Pronaf (Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar), por exemplo, é importante para alimentar o Brasil, porque essa agricultura produz cerca de 60% do que é posto na mesa da população. Foi uma construção conjunta dos movimentos dos pequenos agricultores, dos trabalhadores rurais, é um programa voltado ao público e é um programa de todos", explica.
Orçamento apertado
Para o próximo ano, alguns cortes no orçamento da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), tem gerado o questionamento se será possível fazer mudanças reais. Para a saúde pública, que inclui todos os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), está reservado o valor de R$ 132 bilhões, sendo que R$ 10,4 bilhões — ou seja, 8% — estão destinados às emendas de relator, as RP9. "Para além de um desfinanciamento crônico, nos últimos anos a saúde vem sofrendo com um mal planejamento, o que prejudica a organização dos serviços do SUS e deixa os recursos da saúde vulneráveis a acordos no Legislativo. No Balanço do Orçamento Geral de 2022, as emendas atendem mais a interesses políticos do que às reais necessidades do SUS", aponta, em nota, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Além da saúde, o meio ambiente sofreu na gestão Bolsonaro com a ausência de foco em determinar soluções. Ao comparar os valores destinados para a área em 2022 e em 2023, houve a perda de R$ 164 milhões, já que estão previstos R$ 2,96 bilhões para todas as autarquias que lidam com o tema — Ministério do Meio Ambiente, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto Jardim Botânico, Fundo Nacional do Meio Ambiente e Fundo Clima. O Inesc destaca, ainda, o valor de R$ 366 milhões destinados à Reserva de Contigência, que, segundo o instituto, é uma parcela que "consome silenciosamente o orçamento para o meio ambiente".
Ex-ministro da Justiça no governo de Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo diz que os últimos anos da gestão Bolsonaro foram uma mistura de políticas conservadoras e autoritárias, em que prevaleceu o fortalecimento de um pensamento único. "O grande problema é que o Estado social é um modelo de Estado incorporado para que a meta seja a redução de desigualdades sociais, defesa da dignidade da pessoa humana. Na medida em que se aparelha o Estado, estou afastando essa finalidade, aumenta a desigualdade, aumenta a miséria, atinge oprimidos e, ao mesmo tempo, envolvo a sociedade com a ideia de que só é bom quem pensa como eu. Isso traz danos graves ao Estado concebido pela Constituição", explica o professor de Filosofia do Direito.
Segundo ele, a sociedade tem que estar atenta à separação do que é público e do que é privado para que aquilo que deve ser garantido não seja negligenciado. "Em um país como o nosso, no qual a desigualdade vem de uma matriz histórica, onde a cultura republicana e respeito à totalidade de ideias foram tolhidas por um bom tempo pela ditadura, isso é um retrocesso. É preciso ter ações pedagógicas sociais que conscientizem as pessoas de que a coisa pública não pode ter apropriação privada, os direitos têm que ser protegidos. As pessoas precisam perceber que, ao defender a coisa pública, estão defendendo o que é de todos e não o que é delas", alerta.
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