A Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violência contra a mulher: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. E todas elas têm em sua origem o sexismo, uma construção social que prevê comportamentos sociais para homens e mulheres. No Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher, o DiversEM entrevistou especialistas a respeito dos diferentes tipos de violência.
“Existe na nossa sociedade alguns estereótipos, representados por papeis sociais. Então para a mulher é sempre direcionado o papel de ser a cuidadora, de ser servil, paciente, amorosa, solidária. Todas as atividades profissionais que tenham algum tipo de conexão com esses atributos são automaticamente direcionadas para as mulheres”, explica Sônia Lesse, diretora de experiências e sócia da Profissas, escola de diversidade e inclusão.
Ser mulher passa por uma construção desde a infância dos indivíduos. A partir de de convenções sociais muitos pontos são determinadas a partir do gênero: azul para meninos e rosa para meninas, até as brincadeiras de cada gênero, com a lógica que meninos brincam de carrinho e meninas de bonecas, passando por comentários que moldam o comportamento de ambos: “você deve se sentar como uma mocinha” ou “você é muito bagunceira, parece um menino”.
Todos estes aspectos estão tão enraizados na nossa sociedade que dificilmente é percebido no dia a dia, ocupando um lugar de naturalidade. Nessa lógica, as mulheres automaticamente nascem com um uma delicadeza e um instinto cuidador natos, e qualquer recusa a esse lugar coloca a mulher na dimensão negativa, sendo considerada fria, desinteressada, histérica, desequilibrada, por não atender às expectativas sociais.
Segundo Sônia, o ideal é ensinar as crianças a elogiar uma pessoa não fazer pelos aspectos físicos como o cabelo, sorriso ou corpo bonito. “É necessário desconectar as características físicas dessa mulher dos seus atributos e suas qualidades. Ela pode ser uma criança incrível porque ela é inteligente, criativa, esperta, não porque ela é meiga, sensível ou delicada”, afirma.
Interseccionalidades
Para além do que é ser mulher em uma sociedade, outros marcadores como raça, cor e orientação sexual também afetam a vivência de diversas mulheres.
Sônia explica que quando falamos sobre “mulher”, a imagem que desperta no imaginário coletivo é de uma mulher branca, hétero, cisgênero e sem deficiência. Qualquer mulher que não tenha essas características sempre será acompanhada deste marcador. “Se alguém vai falar sobre mim, essa pessoa vai falar ‘mulher negra’, se for falar sobre uma mulher trans, o “trans” vai sempre acompanhar “mulher” para falar dessa pessoa, e o mesmo para uma mulher com deficiência, exemplifica.
Isso se reflete, por exemplo, no fato que a maioria as mulheres que denunciam violência doméstica são mulheres negras. Em 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Além disso, a diferença entre o salário de um homem branco para uma mulher branca é, em média, de 38% e de um homem branco para uma mulher negra é de 58%.
“Quanto maiores os marcadores das diferenças, mais abaixo dessa pirâmide a pessoa estará. Para uma mulher negra, LGBTQIAP+, com deficiência, esse lugar vai sendo empurrado cada vez mais para baixo, com sua construção e reafirmação de identidade sempre postos a prova”, afirma Sônia.
Sentindo as interseccionalidades na pele
A empresária e influenciadora Karina Délffyn sofre os efeitos do machismo e do racismo todos os dias. Ela conta que ao longo da sua vida sempre foi colocada no estereótipo da mulher agressiva por não compreenderem sua voz forte e potente, levando seu existir para o lado da agressão, e agredindo verbalmente em resposta.
"A gente acaba indo para esse lugar do silenciamento por medo, por ser coagida de alguma forma<br>" Karina Délffyn
Hoje se entendendo enquanto mulher e preta, compreende que tais agressões foram normalizadas pela sociedade. “A gente sempre é colocada nesse lugar e a culpa que a gente sente é muito feroz, e nos atravessa de uma forma que a gente acaba se perdendo de si. Durante muitos anos eu me perdi de mim por ser colocada nesse lugar de agressiva, mas, no fundo, eu estava sofrendo uma agressão”, diz Karina.
Karina ainda conta que as agressões sofridas foram tanto no âmbito pessoal, em relacionamentos, como nos ambientes de trabalho, fazendo com que se silenciasse, o que é mais uma forma de agressão. “A gente acaba indo para esse lugar do silenciamento por medo, por ser coagida de alguma forma. Então é importante que a gente vença essa barreira, e falar sobre essas violências para não normalizar a violência verbal e a coerção”, afirma.
"Paralelo ao fato de sermos a população feminina mais morta no brasil e no mundo, nós somos a população feminina mais procurada, consumida em um teor sexual e de objetificação" Lua Manzano sobre as mulheres trans no Brasil
A produtora Lua Manzano passa por experiência semelhante. Enquanto travesti, Lua trabalha com educação social, realizando palestras sobre diversidade, equidade e inclusão. Em seus trabalhos como produtora, contribui para a inclusão de outras travestis no mercado de trabalho.
Dentre as feminilidades existentes no Brasil, as travestis são uma das que mais sofrem com o preconceito e a marginalização, que levam 90% desse grupo a recorrer à prostituição para sobreviver. A expectativa de vida das travestis não ultrapassa 35 anos por conta da violência imposta a elas.
“Paralelo ao fato de sermos a população feminina mais morta no Brasil e no mundo, nós somos a população feminina mais procurada, consumida em um teor sexual e de objetificação. Então a gente vê que o recorte da pessoa trans de identidade feminina no Brasil precisa de muito mais atenção e cuidado”, afirma Lua.
A produtora aponta como a violência diária afeta a saúde física e mental das travestis, criando uma cultura de silenciamento, fazendo-as acreditar que não são dignas de afeto, de respeito, de trabalho e de dignidade. Além disso, Lua fala de como a interseccionalidade também ocorre com mulheres trans.
“Uma travesti periférica está muito mais suscetível à vulnerabilidade do que eu, que estou no centro de São Paulo. Então eu tenho que ter consciência de classe, de raça, do recorte feminino que estou enquadrada e a partir disso agir e proteger o máximo que eu puder as pessoas que estão nesse espectro feminino, que sofrem violência diária e preconceito velado ou explicito”, afirma Lua.
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