Aos 72 anos e figurando entre as principais autoras do feminismo brasileiro, a filósofa, escritora e ativista antirracismo Sueli Carneiro entra para a história da Universidade de Brasília (UnB) como a primeira mulher negra a receber o título de doutora Honoris Causa. A cerimônia ocorreu na tarde de ontem, no auditório da Faculdade de Direito, e contou com presença maciça de estudantes, amigos e representantes de movimentos sociais negros do DF. O título foi entregue pela reitora Márcia Abrahão, que destacou a trajetória de luta de Sueli e o pioneirismo que sempre pautou a história da instituição.
Em entrevista exclusiva ao Correio, Sueli Carneiro fala sobre a homenagem, que estendeu à todas as mulheres militantes da causa. Comenta o retrocesso vivido nos últimos quatro anos na condução das políticas de equidade racial, tece considerações sobre os dez anos da lei de cotas e repudia a prática de crimes de racismo ainda vigente no país. "Luta, para nós, é verbo", afirma, prevendo que no próximo mandato legislativo, com o número recorde registrado de candidatas negras, os parlamentos serão ocupados por quilombos. "Faremos Palmares de novo", anuncia a fundadora e atual diretora do Geledés — Instituto da Mulher Negra. Leia, a seguir, os principais trechos da conversa.
O que representa ser a primeira mulher negra a receber esse título?
Essa homenagem se estende a um conjunto de mulheres que, historicamente, fizeram a diferença para a comunidade de negras no Brasil; que fizeram a diferença para a produção de conhecimento da nossa comunidade, na resistência que o povo negro empreende neste país, apesar de toda a opressão que padece. Recebo em nome de todas as mulheres valorosas que me antecederam, como Lélia González, Beatriz Nascimento, Thereza Santos, Luiza Bairros, para nomear algumas que eu tive o privilégio de conhecer, de militar junto com elas, que foram minhas companheiras de luta. Recebo essa homenagem em nome de cada uma delas, de todas elas, porque eu sou o resultado de luta de todas essas mulheres, assim de tantas outras que não pude nomear.
Como avalia a condução atual das políticas para a promoção da equidade racial para população negra no país?
É um desafio permanente. Sofremos um violento retrocesso nos últimos quatro anos, mas estamos aqui, em riste, em forma, para voltar a lutar, confiantes que estamos, de que a ambiência democrática indispensável para fazer avançar as nossas lutas será restaurada no próximo dia 2 ou em qualquer outro dia de outubro. Estamos confiantes de que será restabelecido o patamar mínimo democrático indispensável para que possamos pautar as nossas demandas, especialmente de políticas públicas, de promoção da equidade de gênero e de raça.
Qual a análise a senhora faz desses dez anos de política de inclusão?
Excetuando esse período de retrocessos, só a política de cotas que foi implementada nos últimos dez anos mostra a justeza dessa luta, a justeza da reivindicação que nos animou a buscar essa política. Os resultados dela são os mais exitosos possíveis. Enche-nos de orgulho a mudança qualitativa que os campi universitários sofreram a partir da lei de cotas.
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Apesar desses avanços, ainda persistem e se agravam os crimes de racismo em todo o país. O que deve ser feito para frear essa violência histórica?
Vamos lutar. Luta, para nós, é verbo, já disse isso um milhão de vezes. É disso que se trata. O avanço da nossa luta depende do avanço da nossa capacidade organizativa, depende da nossa capacidade de mobilização, depende da nossa incidência política e da nossa capacidade de pautar a nossa agenda de políticas públicas ao Estado brasileiro. Vamos lutar.
Nessas eleições foi registrado número recorde de candidaturas negras. Seria um reflexo dessas mobilizações?
É a evidência de que estamos com toda a disposição de disputar a política institucional. Estamos apresentando candidaturas confiantes que faremos Palmares de novo, ou seja, faremos quilombos nos parlamentos. E isso é só o início de uma jornada de busca, de participação mais equitativa na política institucional.
Como avalia o ativismo negro cada vez mais presente nas redes sociais?
Tem sua importância. A meninada está fazendo o seu papel, está cumprindo esse papel, amplificando a nossa voz. É uma polifonia importante que se espalha nas redes sociais e é produto do avanço da consciência negra, da luta negra, do antirracismo que, infelizmente, cresce na sociedade brasileira.