Lutando há quatro anos contra uma depressão que a impedia de trabalhar, e sofrendo ainda de hipertensão, obesidade, síndrome do pânico e ansiedade, Janaína Araújo, de 44 anos, tentou por oito dias ser atendida no Cras (Centro de Referência de Assistência Social) para ter acesso ao BPC (Benefício de Prestação Continuada).
Sem conseguir agendar um atendimento por telefone, juntou-se a dezenas de pessoas na fila do Cras Paranoá, em Brasília, por volta das 17h30 de uma terça-feira (16/8).
Mas ela nunca chegaria a cruzar os portões do centro de assistência social que se abrem às 8h da manhã.
Por volta das 4h da madrugada de quarta-feira, Janaína começou a passar mal, com sinais de infarto. Ela chegou a ser levada ao hospital, mas não resistiu.
"Ainda estou com aquela sensação de que isso tudo é um pesadelo, que amanhã vou acordar e ela vai estar aqui dormindo e vamos tomar café. Ainda não consegui assimilar tudo e saber que ela não está mais aqui comigo. É um vazio", diz Iomar Fernandes Torres, de 61 anos e companheira de Janaína por dez anos.
"Ela era uma parceira de vida, era eu para ela e ela para mim e tudo nós fazíamos juntas. Éramos companheiras, cúmplices, confidentes, amigas", afirma a trabalhadora autônoma.
"Meu grito não é de cunho político porque, para mim, entra um e sai outro, e continua tudo do mesmo jeito. Mas eu espero, do fundo do meu coração, que não precisem mais outras Janaínas morrerem para se mudar o sistema de assistência social. Para acordarem e verem que aquilo ali é desumano, é humilhante", completa Iomar.
Assistência social perde espaço no Orçamento federal
A morte trágica de Janaína Araújo é um exemplo de como a fragilidade dos serviços de assistência social brasileiros tem afetado a vida de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Para especialistas e gestores municipais ouvidos pela BBC News Brasil, as filas nas portas dos Cras em todo o país são um resultado direto da perda de espaço dos serviços de assistência social no Orçamento federal, além de mudanças na forma de gestão dos programas sociais feitas de forma unilateral pelo governo. Segundo eles, a queda nos recursos revela a falta de prioridade da assistência social.
Procurado para comentar a redução do Orçamento para a assistência social, o Ministério da Cidadania não respondeu aos questionamentos da BBC News Brasil.
Os serviços de assistência social são a rede de equipamentos públicos que possibilita o acesso a benefícios como o Auxílio Brasil, BPC (salário mínimo pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda) e encaminhamento a abrigos para crianças e mulheres vítimas de violência doméstica, por exemplo.
Apesar do recente aumento de recursos para o Auxílio Brasil, essa rede de serviços contínuos, que exigem financiamento de caráter permanente, têm perdido espaço no Orçamento federal.
O modelo de gestão do Suas (Sistema Único de Assistência Social) prevê o cofinanciamento do sistema de assistência social entre União, Distrito Federal, estados e municípios. Mas a parcela da União nesse cofinanciamento está em queda desde 2014 e em 2023 deve atingir o patamar mais baixo em mais de uma década.
Segundo levantamento da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), o orçamento federal para cofinanciamento dos serviços de assistência — que inclui a manutenção dos Cras, Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) e abrigos, por exemplo — diminuiu de cerca de R$ 3 bilhões em 2014, ano de maior orçamento do período recente, para valores próximos a R$ 1 bi em 2021 e 2022, conforme a Lei Orçamentária Anual (LOA).
Estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), órgão vinculado ao Ministério da Economia, mostra a mesma tendência.
"Este volume de recursos chama atenção porque configura o menor montante proposto pelo governo federal nos últimos dez anos. Com isso, sinaliza-se a ausência de prioridade dada a esta política, ainda mais no contexto de uma crise com impactos duradouros na economia e na sociedade e que demandará um longo processo de recuperação", escreveram os técnicos do Ipea, comentando o orçamento para a assistência social em 2021.
Em 2023, o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) atualmente em discussão no Congresso destina montante ainda menor para esses serviços: R$ 48,3 milhões, valor mais baixo em mais de uma década.
Esse valor inclui recursos destinados à Proteção Social Básica (que mantêm os Cras), Proteção Social Especializada (que mantêm todos os serviços especializados) e Estruturação da Rede de Serviços (que inclui gastos com encaminhamento a serviços prestados por entidades).
Aperto fiscal e teto de gastos
Um primeiro motivo que explica por que a rede de serviços de assistência social está perdendo espaço no Orçamento federal, enquanto benefícios como Auxílio Brasil e BPC têm seus recursos mantidos ou até ampliados, é que os programas de transferência de renda são gastos obrigatórios, enquanto as despesas com os serviços socioassistenciais são gastos discricionários — despesas que o governo pode ou não executar, de acordo com a previsão de receitas.
É o que explica Jucimeri Isolda Silveira, professora da Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-PR e responsável pelo estudo Proteção Social, Desproteção e Financiamento do Suas.
"Desde que a Emenda Constitucional 95 [que estabeleceu o teto de gastos, limitando o crescimento da despesa do governo à variação da inflação no ano anterior], os recursos para a assistência social vêm sendo reduzidos. Então é essa rede, que atua lá na ponta, que faz o cadastramento das famílias, que visa o acompanhamento integrado dessa população que acessa os benefícios, que está sendo comprometida", diz Silveira.
Ela dá outro exemplo prático dessa perda de recursos: o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) não recebe recursos federais para ações de enfrentamento desde 2019.
Com a redução dos repasses federais, também ficam prejudicados serviços prestados pelos municípios como atendimento à população em situação de rua, imigrantes e mulheres vítimas de violência.
"Quem faz esse atendimento na ponta é a assistência social, é ela, por exemplo, que garante a proteção integral de crianças em situação de acolhimento institucional, que são mais de 30 mil hoje no Brasil", exemplifica a professora e pesquisadora da PUC-PR.
Para Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), o teto de gastos agravou a situação de perda de receitas para a assistência, mas o quadro de restrição orçamentária é anterior.
"Há uma compressão da despesa discricionária desde 2014, 2015, que é quando o ajuste fiscal começa. O teto de gastos entra no meio dessa história. Ele começa em 2017 e institucionaliza a redução desse tipo de despesa", afirma Pires.
Emendas parlamentares não são solução, dizem gestores
Nos últimos anos, o governo tem buscado compensar a redução de Orçamento para a assistência social por meio da destinação de recursos via emendas parlamentares ou créditos extraordinários, como o recursos emergencial de combate à covid-19.
Mas Elias de Sousa Oliveira, presidente do Congemas (Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social), explica que isso não resolve o problema, já que as estruturas de assistência têm caráter permanente, enquanto esses recursos são de natureza eventual.
"Os serviços de Cras, de Creas, de acolhimento de adultos e crianças, casas-abrigo para mulheres vítimas de violência são serviços continuados. Como eu faço a programação de um serviço que é permanente com o recurso de uma emenda parlamentar que é esporádica?", questiona Oliveira.
O representante do Congemas explica que, para manter o atendimento à população num momento de aumento da demanda pelos mais vulneráveis, os municípios passaram a compensar com o próprio caixa a falta de recursos federais.
"Alguns municípios menores, com maior dificuldade, acabaram diminuindo atendimento e até fechando serviços. Outros municípios acabam cobrindo o que o governo federal não manda, mas isso implica em uma perda da capacidade de aumentar e ampliar o atendimento num momento, pós-pandemia, de aumento da demanda", diz Oliveira.
O representante cita o exemplo de Foz do Iguaçu, cidade onde é secretário de Assistência Social. Até março de 2020, a cidade paranaense tinha 29 mil famílias no Cadastro Único (registro das famílias brasileiras de baixa renda que permite o acesso a benefícios como o Auxílio Brasil), sendo 7 mil delas em extrema pobreza.
Agora, segundo Oliveira, são 47 mil famílias no Cadastro Único e 18 mil famílias na extrema pobreza.
"Isso aumentou a demanda pelos Cras, pelos Creas, por acolhimento, por atendimento da população em situação de rua e, além de não termos expansão das metas de atendimento e do cofinanciamento, ainda temos cortes nos recursos, num contexto de número de atendimentos muito maior", diz o gestor.
Segundo ele, os municípios respondem hoje por 90% de tudo que é investido na assistência social, quadro que poderá ser complicado com a perda de arrecadação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre combustíveis, determinada pelo governo federal como uma forma de reduzir a inflação às vésperas das eleições de outubro.
A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) estima a perda de receitas para os municípios com a medida em R$ 22 bilhões, com efeitos também sobre os gastos com educação e saúde.
Oliveira afirma, porém, que não é só a falta de recursos que explica as filas nas portas dos Cras, como a enfrentada por Janaína em Brasília, no dia em que a companheira de Iomar morreu após dez horas de espera e oito dias de tentativas frustradas de obter um benefício.
Segundo o gestor, com a mudança do Bolsa Família para Auxílio Brasil, o processo de atualização do Cadastro Único mudou. Antes, os municípios tinham um prazo de 60 dias para fazer a averiguação de famílias, realizar a busca ativa e informar o governo federal sobre casos em que a família não pôde ser encontrada para atualizar o cadastro, situação que resultava no bloqueio do benefício até alguém da família comparecer ao Cras de referência.
"Hoje, o governo bloqueia de todo mundo [com cadastro desatualizado] e muitas pessoas só ficam sabendo que estão bloqueadas na hora de ir ao banco sacar o Auxílio Brasil. Você imagina num mês, 3 famílias são bloqueadas em Foz de Iguaçu — como já aconteceu. Essas 3 mil famílias vão imediatamente para os Cras. Isso vai gerar fila", exemplifica Oliveira.
A isso se soma a dificuldade de aumentar o quadro de funcionários de atendimento, devido à restrição de recursos, nesse contexto de aumento da demanda, impulsionada ainda pelo Auxílio Brasil ampliado para R$ 600 até dezembro e pelo aumento do auxílio-gás.
"Anteriormente, quando o governo federal fazia mudanças, ele dialogava com os municípios. Tinha todo um planejamento. Hoje, muitas vezes, Estados e municípios ficam sabendo de mudanças através dos jornais", critica o gestor.
Após a morte de Janaína no Cras Paranoá, em Brasília, o governo do Distrito Federal anunciou uma parceria com o Corpo de Bombeiros Militar do DF para ampliar os atendimentos sociais e desafogar a espera por atendimento nos Cras da capital do país.
A Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal (Sedes) não respondeu a pedido de posicionamento sobre o tema feito pela BBC News Brasil.
Iomar espera que a morte de sua companheira sirva como um alerta para que o sistema de assistência social brasileiro mude.
"A assistência social no nosso país, você me desculpe, mas é decadente, é vergonhosa. Não pelos profissionais da assistência, mas pelo sistema e seus governantes. É um incentivo à fila, ao descaso, à desumanidade", afirma Iomar.
"É preciso uma mudança drástica. Eu quero que meu grito seja ouvido: não deixem mais Janaínas morrerem em busca de uma ajuda para ter um pouco de dignidade. É só o que eu espero: que a morte dela não tenha sido em vão. Eu realmente espero que haja mudanças."
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62815251
Sabia que a BBC está também no Telegram? Inscreva-se no canal.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!