O bicentenário da Independência ocorre em meio a uma forte polarização política, acentuada pela corrida eleitoral. Em 1822, às vésperas do Sete de Setembro, a maior colônia portuguesa também passava por tensões políticas. Nesse cenário turbulento, um homem nascido no Brasil conseguiu unir o país na sua luta pela liberdade da nação, contra as medidas arbitrárias que vinham de Lisboa. José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado o ‘Patriarca da Independência’, é, para muitos especialistas e historiadores, um exemplo de estadista até para os dias atuais.
“Todos os nossos políticos de hoje deveriam ter José Bonifácio em mente. Porque ele, em algum sentido, consegue ‘inventar’ o Brasil, consegue ‘sonhar’ o Brasil. Ele já tinha, antes da independência, um projeto de constituição, um projeto de governo, monta uma diplomacia. Deveria ser um modelo de estadista”, afirma o historiador e secretário nacional de Economia Criativa e Diversidade Cultural, Rafael Nogueira.
Nomeado em 16 de janeiro de 1822 para ser o novo ministro do Reino e Estrangeiros, o Patriarca da Independência recebeu a missão de lançar as bases e estruturar a diplomacia brasileira, enquanto agia como principal conselheiro do príncipe.
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Antes mesmo do país se tornar independente de Portugal, José Bonifácio já havia redigido os seus apontamentos para o Brasil. Para ele, que vivera boa parte de sua trajetória na Europa, em meio ao advento de pensamentos iluministas e liberais, a prática de comércio de escravos era considerada inadmissível naqueles tempos. Além disso, outras ideias, como a reforma agrária, a emancipação dos índios e até criticava o vestuário utilizado no Brasil, que ainda seguia os padrões do frio europeu.
“Ele observou ainda indígenas sendo maltratados e escravizados, ele observou a situação do negro africano, ele observou também o quão mal iam as atividades pré-industriais e da própria exploração mineradora. A nota que ele deu foi muito baixa. Ele não usou números, mas criticou muito a maneira de como as coisas estavam acontecendo”, explica Nogueira.
A busca pelo chamado bem estar, ou bem comum da nação, era uma ideia que o estadista tinha sempre presente e, além disso, a convicção de que todos os homens e mulheres tinham igual dignidade de ser humano, pensamento esse que foi fruto de seu contato com nações mais desenvolvidas a nível intelectual, como França e Inglaterra, e nos seus valores religiosos.
Para a historiadora da UnB Neuma Brilhante, a ideia de pautar seu trabalho no ‘bem comum’ é uma marca que destaca a atuação de Bonifácio em comparação com muitos líderes atuais. “Um conceito que vai ser muito importante para a geração dele, é a ideia do ‘bem comum’. Falta hoje - que o Bonifácio traria para a gente — uma concepção de que é preciso repensar o Brasil e projetos nacionais pautados na ideia do bem comum.”
“Você pega frases dele e dá arrepios, porque parece que está falando de hoje. É um estadista. Ele escreve diversas vezes: ‘Ainda que eu não veja o florescimento, eu quero lançar as sementes’. Acho que falta hoje essa visão transcendente, de uma cronologia expandida e a capacidade de ser pensador e agir através do que acredita. Isso pode servir de inspiração para os políticos atuais”, aponta Rafael Nogueira.
Transferência da capital
Uma das ideias defendidas por José Bonifácio era transferência da capital do país para o interior. O político sabia que o Brasil tinha que explorar outras áreas de seu vasto território, além da longa costa litorânea. Mas, principalmente, em sua época, havia o receio de que, com a independência do Brasil, o Brasil estaria mais suscetível a invasões de outros países, com destaque ao próprio país lusitano, que só foi reconhecer a separação da antiga colônia em 1825.
Havia também um receio quanto à segurança da cidade do Rio de Janeiro, que foi invadida por piratas em algumas ocasiões. O ataque mais conhecido ocorreu em 1711, quando os franceses Jean François Duclerc e René Duguay-Trouin saquearam a capital. Diante disso, o patriarca sugeriu dois nomes para a futura capital: Petrópolis ou Brasília. As duas acabaram por ser construídas.
“A ideia da mudança da capital tinha esse aspecto de segurança. Como é que você tem uma capital que pode ser ocupada por piratas? Imagine se fosse uma guerra de verdade. Se os piratas, que não têm uma organização maior, conseguem tomar, imagine um exército bem treinado. Ali, então, surgiu essa necessidade da transferência da capital”, afirma o doutor em história pela UnB e consultor legislativo da Câmara dos Deputados, José Theodoro Mascarenhas Menck.
Estudos em Portugal
Filho de Bonifácio José de Andrada com D. Maria Bárbara da Silva, casal influente e com grande poder aquisitivo, o menino José Bonifácio nasceu em 1863 na cidade de Santos, à época longe de ser o município com o maior porto da América Latina, tinha apenas 2 mil habitantes. Neste lugar isolado dos centros do país, ele começou a ser instruído por seus tios, que o introduziram na paixão de ler livros e estudar sobre diferentes temas.
Aos 20 anos teve a oportunidade da vida e embarcou para a Europa, para estudar Leis em Coimbra. Depois de concluir os estudos, viajou por todo o continente europeu, com patrocínio da coroa portuguesa, para levar conhecimento ao país lusitano, que, à época, era considerado atrasado cientificamente. Na França, se deparou com os ideais da revolução em vigor e uma cidade efervescente sob o domínio jacobino.
Mesmo sendo considerado "Patriarca da independência”, José Bonifácio, a princípio, não apoiava a separação total de Brasil e Portugal. Um de seus principais amigos, que lhe incumbera a diversos cargos em Portugal, foi D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o Conde de Linhares, que tinha a ideia de formar um grande império lusitano, com as então colônias elevadas, na teoria, ao mesmo patamar de Portugal.
“O Bonifácio vai ter uma formação intelectual e profissional muito ligada ao D. Rodrigo de Sousa Coutinho e ao seu grupo, que estava muito atento ao que estava acontecendo na época. Em 1776, houve a independência dos EUA, que era a principal colônia da Inglaterra. D. Rodrigo ficou muito atento a isso e, desde a década de 1790, ele pensava em formas de fazer com que o Brasil e as outras colônias portuguesas não quisessem se separar”, pontua a historiadora e diretora do Instituto de Ciências Humanas da UnB, Neuma Brilhante.
Político "sanguíneo"
No entanto, o destino reservou a José Bonifácio algumas surpresas. Enquanto o Brasil vivia um momento de afloramento cultural e econômico, advindo da chegada do Rei D. João VI em 1808, Portugal passava por uma crise financeira e de identidade, reforçada com o domínio que a Inglaterra possuía no território sem rei. Isso fez com que a elite lusitana da época promovesse, em 1820, a Revolução Constitucionalista do Porto, que exigia o retorno do líder real, além de outras determinações que buscavam enfraquecer a unidade do Brasil.
“As cortes de Lisboa, fruto da constituinte, tentam reverter e desagregar os elementos que constituíam o Reino do Brasil. E o José Bonifácio, como vice-governador de São Paulo, se insurge contra isso. Ali ele vira político, pois, até então, ele estava sendo cooptado, mas ele passa a ter uma atuação muito grande quando se insurge contra a desagregação das estruturas que fundamentavam o Reino do Brasil”, conta o historiador José Menck.
Insuflado contra as ações que a corte de Lisboa estava tomando do outro lado do Atlântico, Bonifácio ingressa de vez na vida política. Em 1819, ele havia retornado ao país de origem, de onde ficou distante por mais de 30 anos. Quando deixou o Brasil tinha 20 anos e, ao voltar, já era um senhor com a ‘vida feita’, com seus mais de 50 anos. O homem que pensava em passar o resto de seus dias na pacata vila de Santos, viu-se impelido a fazer parte de um movimento que mudaria a história de sua terra.
“Como ele era um homem muito sanguíneo, tomou as dores de uma forma do que ele acreditava que fosse o melhor para o país. Mas ele já era um aposentado (quando veio ao Brasil), tinha voltado para cá para descansar e curtir a vida. Esse era o objetivo dele. Foi o que ele não conseguiu fazer durante toda a vida”, comenta o historiador Menck.
Com a Revolução do Porto, algumas capitanias do Brasil, que são comparadas aos estados de hoje, elevaram-se à condição de província do Reino, no mesmo patamar das que havia em Portugal. Houve, então, eleições para definir os presidentes das novas províncias e José Bonifácio tornou-se o vice-presidente de São Paulo, sob a chefia do antigo capitão João Carlos von Oyenhausen.
A presença de representantes das províncias brasileiras nas cortes de Lisboa, no entanto, não ajudou a diminuir a pressão que havia para que D. Pedro, herdeiro de D. João VI - que já havia regressado a Portugal após a revolução -, retornasse também ao país de origem. “Além de exigir a volta de D. Pedro, o decreto das cortes contém outra coisa que acaba com ‘lua de mel’ entre as duas terras. Ele diz que ‘as juntas de governo tem o poder civil, mas que cada província iria ter um governador de armas escolhido pelas cortes de Portugal, que ficariam atuando nas províncias”, esclarece a historiadora Neuma Brilhante.
Carta a Dom Pedro
As determinações de Portugal foram o estopim para que as províncias agissem para manter o príncipe regente no país. No Rio de Janeiro, D. Pedro já pensava em sua volta para Lisboa, quando recebeu uma carta declarando o apoio do governo e da câmara de São Paulo para que ficasse no Brasil.
Boa parte do documento foi redigida pelo vice-presidente da província, José Bonifácio. A carta endereçada ao filho de D. João tinha um tom bastante enérgico e de apelo. O receio era de que, se Pedro seguisse as determinações de Portugal, o Brasil testemunharia uma série de conflitos nas províncias - como, de fato, haveria alguns no Norte e no Nordeste após a independência - e a unidade de um império estaria gravemente ameaçada.
“Se V. A. Real estiver (o que não é crível) pelo deslumbrado e indecoroso decreto de 29 de setembro, além de perder para o Mundo a dignidade de homem e de príncipe, tornando-se escravo de um pequeno número de desorganizadores, também terá que responder, perante o céu, do rio de sangue que decerto vai correr pelo Brasil com a sua ausência”, é escrito em um trecho da carta.
O documento chegou às mãos do príncipe regente em 1º de janeiro de 1822. Pedro leu a carta e se regozijou, pois ainda tinha dúvidas quanto à posição de outras províncias sobre as determinações de Portugal, e pediu para que a carta fosse amplamente divulgada. Em 8 de janeiro, a Gazeta do Rio de Janeiro publicou o texto em um suplemento à edição do dia.
Depois de São Paulo, outras províncias como Minas Gerais, Goiás e Rio Grande do Sul manifestaram apoio à permanência do príncipe no Brasil. D. Pedro, nesse entrementes, lembra das palavras que seu pai disse antes que partisse de volta para Portugal: “Pedro, se o Brasil se separar, antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses aventureiros” e, assim, no dia 9 de janeiro de 1822, confirmou sua permanência no país. “Como é para o bem de todos e a felicidade geral da nação, estou pronto: digo ao povo que fico”, disse o futuro imperador.
Sete dias depois do “Dia do Fico”, a 16 de janeiro, D. Pedro nomeou José Bonifácio como ministro do Reino e Estrangeiros. “Quando Bonifácio vai para o Rio de Janeiro para reiterar os termos daquela carta, ele já era conhecido e Pedro já o tinha nomeado como ministro de Estado”, explica Menck.
“Escravidão e horrores”
Como ministro do Reino, José Bonifácio começa a criar as primeiras relações diplomáticas do que viria a ser um país, com outras nações já independentes da América, como a Argentina e os Estados Unidos, estabelece embaixadores em Londres e reforça o Exército e a Marinha contra possíveis ataques de Portugal.
“Por outro lado, aqueles temas que ele já tinha rascunhado na Constituição, ele começa a tratar deles também. ‘Como que a gente vai fazer com a educação?’, que era uma preocupação dele, para instituir uma universidade. Isso não sai do papel nesse momento, mas ele já começa a rascunhar”, diz o historiador Rafael Nogueira.
Em 3 de junho de 1822, o príncipe regente convoca a primeira Assembleia Constituinte. Embora ainda não exigisse a separação definitiva com o Reino de Portugal, a iniciativa já era vista pela elite carioca e pela maçonaria, que ajudou a organizar a assembleia, como um grande passo para a consolidação da independência brasileira.
A primeira constituição brasileira ainda não havia saído do papel, mas o 3 de junho aumentou as tensões entre os dois países. “Houve um jornal que, inclusive, comemorava o dia 3 de junho como o Dia da Independência. Porque foi o dia em que D. Pedro convocou uma constituinte para o Brasil, ignorando as cortes de Lisboa”, comenta Nogueira.
Era praticamente inviável a permanência do antigo Reino do Brasil, de Portugal e Algarves. A independência estava cada vez mais madura. Portugal, em resposta à convocação da Assembleia Constituinte, resolve rebaixar D. Pedro a um simples delegado temporário do Congresso e define que os os novos representantes do governo do Brasil seriam delegados por Lisboa.
Enquanto o marido estava em uma viagem pelo interior do país, a princesa D. Leopoldina, que já era bem próxima de Bonifácio, convoca para o dia 2 de setembro o Conselho de Ministros no Rio de Janeiro. Era preciso definir os próximos passos para o país. A princesa escreve à D. Pedro que “o pomo está maduro, colhe-o já senão apodrece'', referindo-se à independência, e José Bonifácio também transmite o conselho ao príncipe: “Senhor, o dado está lançado, e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores. Venha Vossa Alteza Real o quanto antes e decida-se.”
De acordo com fontes que acompanhavam o príncipe regente, ao receber a carta, D. Pedro explodiu de raiva, amassou o papel e o atirou-o ao chão. Percebendo que a hora propícia chegara, ele sacou a espada e bradou: “É tempo! Independência ou morte! Estamos separados de Portugal!”. Eram quatro horas da tarde de 7 de setembro em São Paulo, às margens do Rio Ipiranga.
*Estagiário sob a supervisão de Carlos Alexandre de Souza