Entrevista

"O ateísmo não desumaniza ninguém", diz padre Júlio Lancellotti

Em entrevista ao Correio, Lancellotti comenta, ainda, o debate sobre religião. Entende que, mais importante do que professar uma crença, é desenvolver a humanidade

Henrique Lessa
postado em 26/09/2022 06:00
Na foto, o padre Júlio Lancellotti -  (crédito:  Henrique Lessa/CB)
Na foto, o padre Júlio Lancellotti - (crédito: Henrique Lessa/CB)

Há mais de 20 anos na ruas de São Paulo para ajudar os desamparados, o coordenador da Pastoral do Povo da Rua, padre Júlio Lancellotti, está ciente de que o combate à pobreza é uma luta que vai durar muito no Brasil. "Eu não esperava chegar aos 73 anos e ver a gente voltar atrás em tanta coisa. Eu não vou ver muitas das mudanças pelas quais eu luto, eu vou morrer antes, mas eu luto." Na batalha em favor dos desfavorecidos, Lancellotti se inspira na figura emblemática de Irmã Dulce, outra religiosa que entrou para a história por causa da atenção aos mais pobres. Nesta entrevista ao Correio, o padre Lancellotti afirma que, no Brasil de 2022, combater a miséria também significa entrar em uma luta política. Crítico contumaz do atual governo, o religioso lamenta a violência das fake news, que destrói reputações no mundo virtual e na vida real.

Lancellotti comenta, ainda, o debate sobre religião. Entende que, mais importante do que professar uma crença, é desenvolver a humanidade. "Falei muito na pandemia: a misericórdia, a compaixão e a solidariedade não são dimensões religiosas, são dimensões humanas. O ateísmo não desumaniza ninguém", considera.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o senhor vê o aumento da pobreza em São Paulo?

O aumento da pobreza na cidade é evidente, segundo a prefeitura, a população de rua aumentou em 53% (último ano), mas é possível que o aumento seja maior. Enquanto a prefeitura fala em 32 mil pessoas, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com outra metodologia fala em 42 mil. Aumentou também o que nós chamamos de grupos familiares, com o aumento do número de mulheres e consequentemente o aumento do número de crianças. Esse crescimento acelerado vem desde 2016 e foi agravado pela pandemia.

E quem são essas pessoas que estão na rua?

Tem muitos jovens que não encontram trabalho, que o próprio grupo familiar não consegue mais manter e sobreviver com a presença deles. O número de grupos familiares que têm o pai e a mãe que ficaram desempregados e a inadimplência os joga para a rua, e aumenta o número de mulheres sozinhas com crianças. São sintomas claros de uma sociedade que está doente, de uma necropolítica, que dentro desse sistema neoliberal, escolheu aqueles que vão morrer, os descartáveis, os sem possibilidade.

Muitos acreditam que todos que estão na rua são dependentes químicos. O que o senhor diz a respeito dessas acusações?

Isso é uma ideia falsa. Nem toda pessoa em situação de rua é usuária de drogas, e nem todos os usuários de droga são moradores de rua. Nos condomínios, tem muitos usuários de drogas. Será que só se usa cocaína, heroína e maconha na rua? Você acha? É um estereótipo pensar que quem está na rua são os bandidos e quem não está na rua são os bonzinhos. Se você for procurar incidência de utilização de drogas em universidades, é bem maior do que na rua. Você vai a qualquer happy hour em qualquer sexta-feira em porta de universidade e está todo mundo bebendo. O álcool não é uma droga também?

E como a Pastoral tem atuado?

Temos duas vertentes. Uma é a da convivência. Você não conhece se você não convive, você não defende se você não convive, você não ama se você não convive. E a outra é a vertente de luta de transformação política. Eu digo que é uma síntese, com uma mão você parte o pão; com a outra você luta.

Quantas pessoas vocês atendem?

O nosso café da manhã, diariamente, tem uma média de 700 pessoas. Esse número também vem aumentando. Ele flutua, tem muita gente que chega na cidade, que sai da cidade, tem variação.

Nos últimos anos, a situação piorou?

É evidente que piorou, está todo mundo vendo, o Brasil voltou para o mapa da fome, 33 milhões de pessoas são privadas de alimentação, 60 milhões estão no que o governo chama de insegurança alimentar. São números astronômicos. Piorou devido ao modelo socioeconômico e político que nós temos. Se você olhar neste governo, a baixa de investimento na área social é gritante.

O seu tom crítico ao atual governo tornou o senhor alvo de apoiadores do presidente Bolsonaro? Recentemente o senhor venceu uma ação contra um empresário bolsonarista. O que achou da decisão?

Acho que é importante a gente saber que a internet precisa ter limites éticos, que você não pode usar a presumida liberdade de expressão para ofender e destruir os outros. Você pode pensar de mim o que você quiser, mas nem tudo você pode falar. Você pode ter vontade de matar alguém, mas você sabe que você não pode matar. Dentro do seu jornal você também tem limites, você não pode escrever tudo que quer.

A reparação foi suficiente?

Acho que não é a reparação em termos financeiros, não é isso que mede, acho que o importante é começar a perceber que há limites. Como agora o STF (Supremo Tribunal Federal) tem limitado questões de fake news na internet.

O senhor foi alvo de notícias falsas. O que tem a dizer sobre esses ataques?

Sempre é difícil. Tem um santo na igreja que se chama São Felipe Neri, e tinha uma pessoa que ia confessar com ele e dizia que tinha falado contra fulano, contra o beltrano, inventei isso, aquilo. São Felipe perguntou se ela estava arrependida, e deu a penitência — vá até o topo da torre da igreja e depene uma galinha. A pessoa perguntou: 'Só isso?' Ele disse: 'Não, depois vá juntar as penas'. Experimente ir à torre mais alta, depenar a galinha lá de cima e depois vai recolher. Não tem como. Assim é internet. Depois de uma mentira, não tem como reparar.

As mentiras da internet migram para o mundo real?

Sim, em função de fake news, em função do ódio, da polarização que a gente está vivendo. No Brasil, chamam-se os outros de comunista, de herege. No Brasil nunca teve comunismo. Qual o parâmetro que você tem para saber o que é o comunismo?

Mas Cristo está presente no discurso político...

O que está presente é a utilização do Cristo. Você tem de ter um critério histórico para saber qual é a vida da pessoa. Por exemplo, dizer que Jesus compraria uma pistola: a partir de onde você tira essa conclusão? Você tem de ter uma evidência histórica para essa afirmação.

Mas há um trecho bíblico sobre comprar espadas.

Esse é um texto do Evangelho e, como todo texto, precisa ser visto no contexto. O Saramago por exemplo, é ateu do deus do Salazar. O deus salazarista feriu Saramago e fez ele ser ateu desse deus, assim como, na Espanha, muitos foram ateus do deus do generalíssimo Franco, como no Chile muito são ateus do deus do Pinochet.

A religião católica continua perdendo fiéis?

Será que continua? Nos último 20 a 30 anos sim, mas pega os últimos dois anos, essas igrejas atingiram um platô. Nada na vida só sobe, uma hora estabiliza e depois cai. O mundo era católico, hoje não é mais. Hoje a religião que mais cresce é o Islamismo. Quando vier o Censo brasileiro, vai se apresentar o crescimento dos chamados sem religião. A Holanda era um país completamente católico; hoje muitas igrejas na Holanda são livraria, são bares. Agora isso não quer dizer que eles são mais desumanos. Às vezes as pessoas não são religiosas porque os religiosos são desumanos. Uma forma de eu não aceitar aquilo, eu me torno antirreligioso.

O mundo pode se tornar ateu?

Difícil dizer. O Islamismo cresce muito, e não é ateu, é monoteísta. Mas a questão não é crescer ou não, a questão é a gente ser autêntico com aquilo que a gente acredita. Só dizer 'Eu sou cristão', isso significa o quê? Eu falei muito na pandemia: a misericórdia, a compaixão e a solidariedade não são dimensões religiosas, são dimensões humanas. O ateísmo não desumaniza ninguém. O importante é ser humano. Até teve uma pesquisa que saiu há algum tempo, que diz que os ateus eram mais solidários. Eu recebo aqui muita ajuda de pessoas que dizem não ter religião nenhuma.

O que esperar do próximo governo?

Seja quem for o próximo governo, vai encontrar muitos desafios: superar a fome, superar a miséria, tem de lutar pela diminuição da desigualdade, pela superação da polarização, pela superação da violência. A gente não tem de pensar que vamos ter solução com um ou com outro. Nenhum governo será perfeito, e quem vier encontrará um orçamento já aprovado. Quem entrar vai ter muita dificuldade.

Como resolver a fome?

Eu sugiro a instituição da renda básica, a começar pelos que estão na linha da miséria. São necessárias várias providências. Não existe receita mágica. É importante criar linhas de apoio para a agricultura familiar de produção de alimentos, há diversas ações. E é preciso se encontrar soluções regionais.

E o Auxílio Brasil?

Não é suficiente. Ele não pode durar até dezembro. E depois? Recebe R$ 600 até dezembro, e em janeiro faz o quê?

As pessoas que a Pastoral atende recebem o auxílio?

Muitos não recebem o auxílio porque não têm documentação, porque não estão no cadastro único. O SUAS (Sistema Único de Assistência Social) foi sucateado neste governo. Na pandemia, quando saiu o auxílio emergencial, a resposta saía no smartphone. Como a população de rua vai ter smartphone com internet, com 4G ou 5G? Aqui na paróquia, nós pedimos que um monte de gente emprestasse seus números para receber o código das pessoas na rua. E aconteceram coisas incríveis. Muitos, nós cadastramos e o benefício saiu em seguida. Outros estavam desempregados, mas constavam como empregados no Ministério do Trabalho por defasagem no cadastro. Muitos tinham passado pelo sistema penitenciário, mas eram classificados como encarcerados porque os dados estavam desatualizados.

E como resolver isso?

Alguns, não conseguimos resolver. Tinha pessoas com certidão de nascimento no Maranhão, no Piauí. Tem muita gente que perdeu tudo na água, na rua, no rapa da polícia. E para conseguir uma certidão de nascimento em outro estado, é necessário mandar o envelope selado para receber o documento.

O governo poderia fazer algo?

Nós fizemos várias sugestões para a Caixa Econômica Federal, ela não aceitou nenhuma. Sugerimos que uma autoridade pública atestasse a existência daquela pessoa, um delegado, um padre, um assistente social. Mas, se você for procurar no interior do Brasil, muita gente ficou sem o auxílio emergencial.

Como solucionar o problema da fome?

Não existe uma solução imediata, mas uma luta histórica. Não fomos dormir com tudo bem e acordamos com tudo mal. Nós não vamos sair desse buraco de repente. Eu não esperava chegar aos 73 anos, e ver a gente voltar atrás em tanta coisa. Eu não vou ver muitas das mudanças pela quais eu luto, eu vou morrer antes, mas eu luto.

Mas avançamos em alguma coisa?

Acho que avançamos em coisas tecnológicas, mas não na qualidade de vida do povo. A quantidade de gente pobre é muito grande, muita gente na miséria, sem assistência médica, sem garantia de vida. A gente, aqui no Brasil pelo menos, passa por um processo de embrutecimento muito grande.

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