O estudante Charles Wallace dos Reis Aguiar (23), aluno de História na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), foi encontrado morto na madrugada do domingo (21), na Delegacia Policia Militar de Ouro Preto, enforcado com um tirante para canecas.
Segundo a Polícia Militar, Charles, que era negro, gay e militante de movimentos sociais, foi detido após uma discussão com seu namorado, na noite de sábado (20), em Mariana, quando ele teria desacatado os policiais chamados para apartar a confusão. Levado para a Delegacia de Ouro Preto, Charles foi colocado em uma cela, vindo a ser encontrado, momentos depois, já sem vida.
Apesar de a polícia sustentar a versão de suicídio, amigos, Ufop, instituições estudantis e figuras políticas cobram maiores explicações sobre o caso, que consideram pouco esclarecido.
‘Ele estava machucado’
Segundo uma fonte próxima de Charles, ele ser um homem negro e gay pode ter influenciado na forma em que foi tratado pelos policiais. Além disso, segundo a mesma fonte, ele foi encontrado com o rosto machucado.
‘O Charles tinha uma tatuagem do símbolo do Comunismo no braço somado ao fato dele ser negro, gay e estar brigando com o namorado, faz com que qualquer coisa que ele tenha falado à polícia já dê o aval de um tratamento mais bruto. Ele estava todo machucado no rosto, então eu acho que ele apanhou. Ele deve ter apanhado bastante.’
Charles estar com o tirante de canecas numa cela também gerou críticas da fonte.
‘Como você prende uma pessoa numa cela com um tirante de canecas, cadarço do tênis e não tira isso da pessoa? Isso é protocolo. Acho que a maneira como qlideram com ele, faltou protocolo.’
Uma outra fonte chegou a afirmar que os policiais sabiam da existência do tirante, sendo ele devolvido ao Charles.
‘No caminho para Ouro Preto, o tirante estava na frente da viatura, com os policiais. Ao descer da viatura, o cordão chegou a cair no chão, mas o próprio policial o colocou no bolso de Charles. Não sabemos se o PM esqueceu de pegá-lo antes de levar o Charles para a cela.’
Versão da Polícia Militar
Procurado pelo Estado de Minas, o 52º Batalhão de Polícia Militar, que opera nas cidades de Mariana e Ouro Preto, respondeu que “em casos de autoextermínio, não fazemos a divulgação de dados da ocorrência.”
Apesar da negativa, um policial que esteve de plantão no dia da morte de Charles deu uma declaração ao site Agência Primaz, onde narrou a versão da polícia na dinâmica dos fatos.
Segundo o PM, a guarnição foi acionada para conter uma discussão acalorada, com agressões físicas, numa travessa entre as ruas Wenceslau Brás e Marquês de Pombal, ambas em Mariana, por volta das 20h30 do sábado (20). Chegando ao local, os policiais encontraram Charles e seu namorado e conversaram com ambos, até que os ânimos se acalmassem. Quando a briga foi apartada, o namorado de Charles saiu da cena e os policiais então deixaram o local.
Na versão do policial, em seguida, pouco depois, houve outro chamado para as proximidades e outra viatura foi destacada para o local. Chegando lá, os dois estavam novamente em discussão. Os policiais mais uma vez apartaram a confusão e o namorado de Charles teria entrado em uma casa. Quando a viatura se afastou novamente, os policiais afirmaram ter ouvido gritos e voltaram ao local.
Os PMs disseram que ao tentarem apartar novamente a briga, Charles teria desacatado um dos militares, que deram voz de prisão ao jovem. O namorado de Charles e uma amiga voltaram para a rua e todos foram encaminhados, primeiro à Policlínica de Mariana, para a realização de exames de corpo de delito, onde, de acordo com a polícia, Charles teria ameaçado um policial, além de ter resistido à prisão. ‘Essa é a última prisão que você irá fazer’, teria dito o estudante.
Em seguida, o policial afirmou que os envolvidos foram levados para a Delegacia de Ouro Preto. Lá a ocorrência começou a ser lavrada e Charles foi conduzido para uma cela, enquanto o namorado e sua amiga ficaram no pátio da Delegacia.
Durante os procedimentos, a Polícia Militar afirmou ter feito a revista no rapaz, encontrando em seus bolsos um celular e um maço de cigarros. Sobre o tirante, a PM afirmou que o jovem não estava com nenhuma caneca e que a revista foi padrão e que o cordão poderia ter sido escondido nas roupas do jovem.
Charles então teria ficado na cela enquanto os procedimentos padrão da PM eram feitos. De acordo com a versão policial, um militar foi até a cela de Charles duas vezes para ver se estava tudo bem e na terceira, teria encontrado o estudante já sem vida. A polícia afirmou que o Samu foi chamado, mas nada pôde ser feito.
Segundo a versão policial, o período entre a chegada na delegacia e a morte de Charles foi de, aproximadamente, uma hora, pois eles deram entrada pouco depois das 1h da manhã do domingo (21) e o jovem foi encontrado sem vida às 2h30.
Nota da Ufop
Em nota, a Ufop prestou solidariedade a amigos e familiares de Charles e afirmou que “A Administração Central está solicitando mais informações sobre o ocorrido, assim como uma apuração rigorosa para que não haja dúvidas sobre os fatos.”
Leia a nota da Ufop na íntegra:
“É com pesar que a Universidade Federal de Ouro Preto comunica o falecimento de Charles Wallace dos Reis, aluno do curso de História.
Charles faleceu neste domingo (21), em Ouro Preto, em circunstância ainda não esclarecida. A Administração Central está solicitando mais informações sobre o ocorrido, assim como uma apuração rigorosa para que não haja dúvidas sobre os fatos.
O Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) se manifestou em nota:
É com extremo pesar e luto que comunicamos a perda de nosso querido aluno Charles Wallace dos Reis. Neste momento de dor, em que buscamos entender ainda o que aconteceu, o ICHS manifesta solidariedade aos familiares, aos amigos mais próximos que com ele conviviam na República Cangaço e, também, aos alunos do Instituto, expressando as mais sinceras condolências. Que possamos nos restabelecer da dor e, juntos, nos fortalecer".
A comunidade acadêmica se solidariza com familiares e amigos.”
Pedido de informações
A reportagem do Estado de Minas entrou em contato com a Universidade Federal de Ouro Preto buscando saber quais foram as atitudes tomadas pela Administração Central da instituição acerca do caso. De acordo com a Assessoria de Comunicação da Ufop, a universidade contactou a OAB-MG e a Comissão de Direitos Humanos da OAB para prestar apoio jurídico aos familiares.
‘Informamos que foram feitos contatos com o vice-diretor da OAB-MG, Subseção de Ouro Preto, Lucas de Assis Sena Santos, para que a entidade pudesse fazer acompanhamento junto à família do jovem, assim como atuar com a Comissão de Direitos Humanos da OAB-MG/Ouro Preto para verificar o ocorrido na Delegacia.’
Além disso, a instituição buscou apoio da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-MG e, segundo ela, foi procurada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de MG.
‘Também foi feito contato com o professor Alexandre Bahia (UFOP), vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-MG, solicitando também apoio para verificação do ocorrido. A partir desse contato, fomos procurados pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de MG, a partir de assessores parlamentares da presidenta da comissão, deputada Andreia de Jesus, que ofereceu apoio para a família e reforço na solicitação de explicações.’
De acordo com a Ufop, familiares e moradores da república onde Charles morava também foram procurados pela instituição, sendo colocados em contato com as comissões que acompanham o caso. Também foram pedidas informações adicionais para a Polícia Militar.
‘Internamente, por meio da Pró-reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (Prace), que participou de todas as mediações citadas, foram realizadas reuniões com família do estudante para prestar condolências e colocá-los em contato com as comissões que estão acompanhando o caso, ocorrendo o mesmo com os moradores da República onde o aluno morava. Ainda, via Reitoria, está sendo encaminhado ofício para o Delegado Regional de Ouro Preto solicitando informações sobre o falecimento do aluno ocorrido nas dependências da Delegacia.’
“Justiça por Charles”
Outra das manifestações acerca do caso partiu do Centro Acadêmico de História da Universidade Federal de Ouro Preto (Cahis), que, em nota, prestou condolências, mas também cobrou explicações e “justiça por Charles”. No texto, o Cahis ainda afirma que repudia “qualquer atitude racista e homofóbica que pode ter conduzido a situação da maneira em que se deu”.
A reportagem do Estado de Minas conversou com o Cahis, que cobrou uma investigação minuciosa do caso.
‘A gente precisa cobrar das autoridades que elas façam uma investigação mais apurada. Quem garante que foi um suicídio? Temos acolhido familiares e a república onde Charles morava e pretendemos levar as lutas e pautas de Charles adiante. Ele era do Cahis. É algo muito triste.’
O CA ainda criticou o abuso policial recorrente no Brasil.
‘Sempre que vemos notícias de jovens que morrem pela PM ficamos revoltados e tudo mais, mas assim, quando acontece com um dos nossos a gente vê muito mais nitidamente o tamanho e a gravidade desse problema. Pode sim existir racismo e homofobia incluídos. A gente vive no Brasil, é muito preconceituoso. A questão é o abuso de poder. Sob tutela deles o corpo aparece morto? As coisas estão muito confusas. A gente não sabe o que aconteceu dali pra dentro’
Leia a nota do Cahis, na íntegra:
'Primeiramente, diante do falecimento de nosso querido amigo Charles Wallace Dos Reis Aguiar, gostaríamos de desejar nossos sentimentos à família e à República Cangaço.
O CAHIS (Centro Acadêmico de História), a UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), o movimento político e a educação brasileira perdem uma pessoa de muita força e coragem, que não se calava diante das injustiças e que tinha pela frente um futuro de muitas conquistas.
Charles dava a vida pelas causas e vivia por elas, para honrar sua enorme força e coragem, levaremos suas lutas adiante. Sempre foi quem era, pura e verdadeiramente; cheio de vida, de um carisma e caráter admiráveis. Nunca deixou de acreditar e lutar pelo que lhe cabia.
Nós exigimos justiça por Charles! Exigimos que o caso seja investigado a fundo e melhor esclarecido; não aceitaremos sermos reprimidos pela Polícia Militar, pela força que deveria nos proteger.
Repudiamos qualquer atitude racista e homofóbica que pode ter conduzido a situação da maneira em que se deu. Em um mundo onde ser preto, gay e politizado é o mesmo que segurar um alvo, viver é um ato de insurreição.
Charles, presente!
“A liberdade é a possibilidade de ser feliz sem medo” - Odo Marquand.'
Comissão de Direitos Humanos
Apesar da versão policial, familiares e órgãos políticos não se mostram satisfeitos com as explicações. A Deputada Estadual Andréia de Jesus (PT/MG), Presidenta da Comissão de Direitos Humanos na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, publicou em seu Twitter sobre o caso, afirmando que “A família do jovem tem dúvidas sobre a hipótese de suicídio e exige que o Estado explique o motivo pelo qual alguém sob sua responsabilidade tenha morrido sem explicação.”
A deputada ainda falou sobre os próximos passos da Comissão de Direitos Humanos, veja as declarações de Andréia na íntegra:
'DENÚNCIA
#ComissãodeDireitosHumanos
Recebemos denúncias de que, no último dia 20, por volta de 20:30, um jovem negro homossexual foi conduzido pela polícia, após uma suposta briga com seu namorado, e depois foi encontrado morto.
Este triste fato teve início na cidade de Mariana/MG e terminou em uma delegacia de Ouro Preto/MG. Segundo relatos, às autoridades disseram que ele se enforcou, mas não deram as explicações devidas.
A família do jovem tem dúvidas sobre a hipótese de suicídio e exige que o Estado explique o motivo pelo qual alguém sob sua responsabilidade tenha morrido sem explicação.
Assim que recebeu a denúncia, a Comissão de Direitos Humanos:
1- Conversou com Universidade de Ouro Preto - Professor Alexandre Bahia e Pró-Reitora Natalia Lisboa;
2- Informou aos representantes do representante - CELLOS e Abglt;
3- Ligou para a família e prestou solidariedade;
4- Recebeu o Boletim de Ocorrência;
Agora, é fazer ofícios, cobrar das instituições e pensar em mais ações.
Seguimos atuando e cumprindo nosso papel.'
Posicionamento da Polícia Civil
Em sua versão à Agência Primaz, a Polícia Militar afirmou que as investigações da morte ficariam a cargo da Polícia Civil. O órgão emitiu nota sobre o caso. Veja:
“A Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) informa que a perícia esteve no local fazendo os levantamentos necessários que irão subsidiar a investigação que apura a morte de um detento em uma cela em Ouro Preto nesse domingo (21/8). O corpo foi encaminhado ao Posto Médico-Legal, onde foi submetido a exames. Um inquérito foi instaurado para apurar a causa e circunstâncias da morte.”
O laudo da morte tem prazo de até 30 dias para ficar pronto.
O namorado de Charles não foi encontrado para dar sua versão dos acontecimentos.