“A minha vida era um filme de terror”, resume Maria (nome fictício para proteger a identidade da vítima), hoje aos 39 anos. A mulher foi estuprada durante toda a infância até os 13 anos, por pessoas da própria família e conhecidos. “Só parou quando eu já tinha um pouco mais de condições de falar, contar para alguém ou me defender.” Os abusos aconteciam dentro de casa e em um outro local onde a mãe dela e de mais quatro filhos a deixava para poder trabalhar. O pai, alcoólatra, é descrito como violento.
Ela nunca contou para ninguém das violências sofridas e lembra que convive com o medo desde muito pequena. O caso de Maria retrata a realidade de muitas mulheres e crianças que diariamente são vítimas de um crime envolto em medo, culpa, sofrimento e silêncio. Em Minas Gerais, por exemplo, 11 pessoas são estupradas por dia.
De acordo com dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), de janeiro a maio deste ano, foram registrados 1.723 casos. A ocorrência deste tipo de crime aumentou 10% em relação ao mesmo período do ano passado, quando foram contabilizados 1.568 casos. Já entre 2020 e 2021, a alta foi de 8% no número de casos (3.668 contra 3.945).
Em BH, entre janeiro e maio, 201 pessoas foram vítimas desse tipo de violência, o que representa um caso por dia. Em 2021, foram 217 ocorrências no período, 7% mais que neste ano. Porém, entre 2020 e 2021, a capital registrou um aumento de 6% no número de casos (491 contra 519).
Mesmo após tantos anos, Maria ainda lida com as consequências da violência sexual. “As pessoas que fizeram isso tinham a obrigação de me defender, eram pessoas que eu amava. Até hoje isso pra mim é confuso, perturbador. Fiquei dos 13 aos 29 anos negando a violência. Aos 12, tentei suicídio”, lembra às lágrimas.
Ela diz que se sentia culpada e que, certa vez, tentou contar para a mãe o que acontecia. “Mas ela era uma pessoa muito nervosa, com cinco filhos, tinha que trabalhar muito porque meu pai não ajudava em nada. Faltava comida.” A mãe também batia nela. “O que me traz mais mágoa é que eu tive que conviver com isso sozinha.”
Maria também relata o medo constante de sofrer novos estupros, que durou até seus 25 anos. “Tinha muito medo da violência em si, fui muito machucada. Sentia muito medo dessa situação de dor, machucaram o meu corpo mesmo. Tinha medo de dormir e ser violentada. Não fugia porque tinha medo de sofrer essa violência também na rua. Vivi a vida inteira com culpa e medo. Sinto vergonha até hoje.” E completa: “Aos 29 anos, quando consegui dizer pra mim mesma que fui estuprada a infância inteira, minha vida ficou sombria. Mas também foi libertador.”
CASOS CHOCANTES
Nos últimos meses, surgiram casos de repercussão envolvendo meninas e mulheres vítimas de estupro. No fim de junho, uma menina de 11 anos, grávida após sofrer violência sexual, foi impedida por uma juíza de Santa Catarina de fazer um aborto legal e enviada a um abrigo para dar à luz, decisão que acabou sendo revogada, seguida de interrupção da gravidez.
Poucos dias depois, a atriz Klara Castanho publicou uma carta aberta nas redes sociais contando que também foi vítima de um estupro, após ter seu nome envolvido em rumores sobre a entrega de um bebê para adoção. Em 11 de julho, a vítima foi uma mulher grávida, violentada durante o trabalho de parto, pelo anestesista Giovanni Quintella Bezerra, no Hospital da Mulher de São João de Meriti, no Rio de Janeiro.
O caso mais recente que chocou os mineiros foi o da menina Bárbara Vitória, de 10, que após ficar dois dias desaparecida foi encontrada morta em um campo de futebol, em Ribeirão das Neves, na Grande BH. A polícia confirmou que ela foi estuprada e enforcada.
A diretora da ONG Think Olga, Maíra Liguori, diz que esses abusos não são recentes, só estão sendo mais conversados, mapeados e entendidos. Ela lembra que até recentemente o assédio sexual não era entendido como uma violência. “Fazia parte de ser mulher andar na rua e sofrer assédio. Assim como fazia parte de ser homem assediar mulheres nas ruas.”
Porém, segundo Maíra, hoje essas discussões são mais acessíveis, transformando a visão das mulheres sobre o assunto, além da possibilidade de denunciar os abusos. “O que está acontecendo é que essas violências que sempre existiram de forma mais ou menos escancarada, agora estão sendo verbalizadas pelas mulheres”, analisa.
A Think Olga é uma ONG que trabalha a conscientização das mulheres e a disseminação de informação sobre leis que protegem esse público. A diretora da entidade destaca o exemplo da lei da importunação sexual.
“Começamos a falar sobre isso em 2013, quando o assédio não era entendido como uma violência. A partir desse debate público, um projeto de lei foi elaborado com base nas informações e depoimentos levantados por nós.” A lei da importunação sexual foi implementada em 2018.
Sequelas
Maria afirma que foi com o apoio psicológico que conseguiu ter uma qualidade de vida melhor. Ela encontrou essa assistência quando começou um curso em uma faculdade de BH. Depois que se formou, ainda se sentia instável e resolveu procurar ajuda psicológica. “Aos 35 anos, foi a primeira vez em que me senti acolhida de verdade”, diz emocionada ao se lembrar do abraço que recebeu da profissional de psicologia que a atende.
O tratamento iniciado há quatro anos foi um divisor de águas em sua vida. “Toda menina ou mulher que passa por isso deveria ter um apoio especializado. Toda essa violência, por todos esses anos, me trouxe marcas que são irreparáveis. Tinha muitas crises de ansiedade e depressão, que trato até hoje. Eu não me sentia mulher, me sentia um objeto, suja, sentia culpa.”
No ano passado, após mais de 20 anos do fim dos abusos, ela conseguiu contar para um irmão mais novo. “Contei superficialmente. Não quero me expor. Hoje, se eu falasse sobre isso ia ter uma repercussão muito negativa para minha família.” A mãe já é idosa e Maria lamenta não ter podido contar com a ajuda dela. A mulher também relata não conseguir se relacionar afetivamente. “Não confio em nenhum homem, nunca tive um namoro sério. Confiar pra mim é muito difícil.”
Prevenção, denúncia e acolhimento
Por medo de serem julgadas, muitas vítimas de violência sexual “ não conseguem contar sobre o abuso de imediato nem mesmo depois de buscar ajuda, diz a psicóloga Ana Carolina Pimentel, coordenadora do Grupo de Apoio a Mulheres Vítimas de Abusos (GAMVA BH). Ela destaca que a principal característica do abuso sexual, principalmente o infantil, é a culpa. “A pessoa acredita que provocou esse abuso.”
O objetivo do grupo é acolher as vítimas e fazer com que elas entendam que não são culpadas pelos abusos sofridos. “Não é a saia ou estar no lugar errado. Ela não tem culpa disso, o culpado é o agressor e não a vítima. A parte mais traumática do abuso é a vítima se sentir invalidada quando expõe a violência sofrida.”
A psicóloga clínica, Cláudia Natividade, atende mulheres vítimas de violência em seu consultório há 24 anos e diz que nem sempre a vítima procura ajuda imediatamente. “É bastante comum estarmos atendendo mulheres e, em determinado momento, ela se lembra que sofreu abuso na infância ou relata uma violência sexual que já sofreu na fase adulta.” Os agressores podem ser namorados, companheiros ou maridos. “Ela não considera que teve aquela experiência ou conscientemente esconde o fato e não relata para outras pessoas. Esses acontecimentos, sejam na infância ou mesmo na vida adulta, são experiências muito ameaçadoras. Desorganizam as mulheres de forma muito marcada porque são violações.”
E essas violações, segundo Cláudia, causam danos psíquicos que podem acarretar dificuldades de reorganizar relações íntimas de forma saudável.
A psicóloga afirma que o processo terapêutico é importante para a vítima desconstruir essa ideia e passar a se conectar e entender relações de cuidado. “É um movimento de deixar essa questão no passado, mas isso depende de tempo e ele é muito específico de pessoa para pessoa.” Por outro lado, a vítima que não procura suporte pode desenvolver outros transtornos. “São bastante comuns quadros de ansiedade, depressão, transtornos alimentares e isolamento social.”
O crime
A delegada Renata Ribeiro Fagundes, da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente explica que o estupro se configura com o constrangimento da vítima a prática de qualquer ato libidinoso feito sem o seu consentimento. Já o estupro de vulnerável acontece quando a vítima é menor de 14 anos ou não pode, por qualquer razão, oferecer resistência.
“No caso dos menores de 14 anos, a prática do crime se configura ainda que haja consentimento da vítima para os atos. Nos demais, podem estar pessoas com deficiência, que ingeriram medicamentos ou estavam sedadas, por exemplo.” O caso da paciente estuprada pelo anestesista Giovanni Quintella Bezerra se encaixa nesse quesito.
Já o crime tentado ocorre quando o autor, por algum motivo alheio a sua vontade, não consegue consumá-lo. De acordo com ela, existem outros crimes com características semelhantes, como o de importunação sexual, que também se configura pela prática de atos libidinosos: importunação, estupro ou posse sexual mediante fraude.
Intimidade
Por ser um crime que atinge a intimidade da pessoa, a vítima do estupro tem mais dificuldade de denunciar e isso leva a uma subnotificação de casos. A delegada ressalta que em situações que envolvem procedimentos de saúde, esse receio é ainda maior. “A vítima tem dificuldade de saber se aquele é um procedimento normal. Além disso, o profissional de saúde é uma pessoa que inspira confiança e a vítima não imagina que vá acontecer uma violação.”
No caso das crianças e adolescentes, a delegada reforça que é preciso que pais e responsáveis orientem os filhos sobre que tipo de conduta é aceitável por parte de um adulto. “É preciso ficar atento também ao deixar os filhos com outras pessoas que estão tomando conta deles, outros familiares.”
Em Belo Horizonte, as denúncias podem ser feitas na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (Depca), localizada na Avenida Nossa Senhora de Fátima, 2.175, no Bairro Carlos Prates, Região Noroeste e na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, localizada na Avenida Barbacena, 288, no Barro Preto, Região Centro-Sul, com atendimento 24 horas. Em outras cidades de Minas, ocorrências podem ser registradas qualquer unidade da Polícia Civil. As denúncias também podem ser feitas pelo Disque 100 ou 180.
Enfrentamento
A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) afirma que adota políticas de enfrentamento aos crimes sexuais e de atendimento às em Minas. Em nota, citou o Comitê Estadual de Gestão do Atendimento Humanizado às Vítimas de Violência Sexual (CEAHVIS) e a participação no Fórum de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.
Cita, ainda, ações da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, por meio do Grupo de Combate aos Crimes Sexuais: formação continuada sobre crimes de estupro para servidores da Polícia Civil e protocolo humanizado e atendimento multidisciplinar na delegacia no primeiro atendimentoda vítima.
Além dessas iniciativas, completa o texto, o Estado mantém o Centro Risoleta Neves de Atendimento à Mulher (Cerna), que acompanha mulheres que sofreram violência doméstica ou de qualquer natureza, oferecendo apoio psicossocial na unidade.
Gravidez depois da agressão
Um estudo feito por médicas do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostra que mais da metade das mulheres vítimas de estupro que procuraram atendimento no local estavam grávidas.
O levantamento foi feito entre 1º de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2020. Nesse período, foram atendidas 53 mulheres, sendo 33 em 2019 e 20 no ano seguinte. As pesquisadoras destacam que “apesar do aumento dos casos de violência contra a mulher no Brasil, a demanda pelo atendimento a mulheres em situação de violência sexual no hospital foi menor do que no ano anterior à pandemia.”
Outra constatação do estudo foi que, em 2020, a maioria dos casos atendidos tiveram como local dos abusos o ambiente domiciliar, a maior parte das mulheres atendidas havia sofrido violência anterior e 25% delas já conheciam o agressor. No período anterior à pandemia, a violência relatada acontecia nas ruas ou em eventos sociais. “O número de atendimentos a mulheres com gestação decorrente de estupro e para o aborto legal se manteve estável.”
As pesquisadoras concluíram que a diminuição da procura por atendimento ocorreu, possivelmente, em razão do isolamento social provocado pela pandemia da COVID-19. “Porém, nos casos de gestação decorrente de violência sexual, as vítimas foram mais ativas em procurar o atendimento médico especializado para solicitar a interrupção legal da gravidez.”
Dos 33 casos atendidos em 2019, 15% ocorreram em ambiente domiciliar, 24% com violência física associada, em 21,2% dos eventos a vítima já tinha sido violentada anteriormente e em 70% dos casos não foi feito boletim de ocorrência.
Já em relação aos 20 casos atendidos em 2020, 35% ocorreram em ambiente domiciliar, 40% com violência física, 30% com episódios prévios de abuso sexual e 65% sem denúncia em órgãos responsáveis pela segurança
Em relação às gestações decorrentes da violência sexual, em 2019 foram registradas 23 (69,7%) e 20 tiveram interrupção legal autorizada. Já em 2020, foram 11 gestações (55%) todas com desfecho de aborto autorizado.