“Tenho medo da fome”, disse Célia Arquimino Barros, dentro do barracão de três cômodos onde mora no Bairro São Cosme, em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Aos 46 anos, ela desdobra-se para criar os seis filhos. “É muito triste não ter nada para comer nos armários. Já teve dias em que dei água com açúcar para meu bebê para ver se ele parava de chorar. Tentava fazer ele dormir para esquecer a fome”, declara. Retrato da fome que aflige 33 milhões de pessoas no Brasil, a história de Célia ganhou repercussão após seu filho Miguel, de 11 anos, ligar para a polícia e pedir ajuda para a família.
Nos últimos dias, o cardápio da família se baseou em fubá e farinha. Ela relatou que estava sem comprar alimentos havia cerca de três semanas. “Primeiro começamos comendo só macarrão. Aí acabou e ficou o fubá. Não tinha opção, não podia deixar com fome. Então, eu fazia o mingau doce de manhã e à noite um angu de fubá, porque não tinha mais nada”, conta. Segundo Célia, a situação começou a piorar há cerca de sete meses, quando ela teve o Bolsa Família bloqueado. “O bebê era o que mais me dava trabalho, porque ele chorava muito. Ele não entende. Chorava o tempo todo”, relata.
A fome é descrita pela pequena Sara, de 3, filha de Célia, como uma dor no estômago como se fosse um soco. “Ela ficava com dor na barriga de fome. O Miguel fez 11 anos e olha como ele é miudinho. Ele já é um pouco anêmico, por causa da deficiência na alimentação”, conta com pesar na voz. Mãe solo, ela cuida também de três netos, com idades entre 1 e 4 anos, que moram com a mãe deles em um barracão ao lado. “Eu estava desesperada, não estava aguentando mais ver aquela situação e nem pedir na rua, porque as pessoas acham que você está com preguiça, que você não quer trabalhar, e eles não entendem a situação”, conta Célia.
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Mesmo quando recebia o auxílio do governo, ela diz que o dinheiro já não era suficiente para sustentar a família. “Recebia R$ 535. Com o preço das coisas, já não comprava nada, não dava para manter muito tempo a casa. Você faz uma compra que não dá para 15 dias. Ainda mais com um bebê em casa”, afirma. Divorciada do pai das crianças, ela está desempregada e, desde o início da pandemia, não consegue mais bicos para ajudar na renda. “O pai manda só R$ 250. Ele também está desempregado, o que ele arruma é o que ele manda. Mas ele dá isso só de mês em mês. É só aquilo e acabou”, conta. Depois da ligação da criança para o 190, a própria Polícia Militar iniciou campanha para arrecadar doações para a família, entregues ontem.
Paula Fernandes Pessoa, de 36, vive realidade semelhante à de Célia. Atualmente, ela também está desempregada e é mãe solo de três crianças: Pedro de 13, Rebeca, de 2, e Samuel, de 2 meses. Além dos filhos, Paula mora com o irmão no Morro do Papagaio, Região Centro-Sul de BH. A família é assistida pela Central Única das Favelas em Minas Gerais (Cufa-MG) desde que Paula descobriu que estava grávida do filho mais novo. “Só o auxílio do governo não está dando para alimentar todo mundo. Quando cheguei nessa situação de abrir o armário e ver que não tinha nada, meu compadre me falou da Cufa.” Desde então, a família recebe cesta básica e assistência da entidade, com doações de botijão de gás e outros alimentos.
“Antes da pandemia, eu trabalhava de faxineira em um prédio perto da minha casa.” Agora, com o filho pequeno, não consegue retomar a atividade. Paula passou por momentos de desespero, sem ter o que dar de comer para os filhos. “É o pior sentimento do mundo, como se você não merecesse ter os filhos que tem. A criança olhar para você com os olhos brancos, você olhar para o armário e não ter nada para dar. Pensa em fazer alguma coisa, mas sabe que aquilo não vai matar a fome da criança.”
Saúde em perigo
A nutricionista Brenda Ribas Matoso afirma que a má alimentação prejudica a saúde das crianças, deixando-as sujeitas a dificuldades de aprendizagem. “São tantos riscos que é até difícil saber por onde começar. Isso prejudica principalmente crianças e adolescentes em fase de crescimento, porque elas precisam de nutrientes para crescer e se desenvolver”, comenta. Quanto mais avançado o nível de insegurança alimentar, maior o risco de desnutrição. “O ideal seria que as pessoas tenham acesso a pelo menos o arroz e feijão, além do ovo, que daria suporte de aminoácidos essenciais e garantiram acesso a nutrição. E estamos falando de alimentos básicos”, complementa.
Esse cenário também traz problemas psicológicos “ A criança não consegue crescer, pode ter problemas estéticos, como de cabelo, pele mais frágil. Pode acarretar em anemia pelo não consumo de ferro. E uma criança anêmica não tem desenvolvimento cognitivo adequado, podendo ter problemas de memória, por exemplo. São prejuízos muito grandes”, afirma a nutricionista. Ela também reforça que a criança precisa ter atenção ao ferro: “Porque estão em fase de crescimento e precisam de uma quantidade de ferro suficiente, além das vitaminas do complexo B, para terem desenvolvimento adequado. E o zinco, que também é superimportante para essa fase”.
Vulnerabilidade cresce
O presidente da Central Única das Favelas em Minas Gerais (Cufa-MG), Francis Henrique, explica que antes da pandemia, o atendimento a famílias em situação de vulnerabilidade alimentar era controlado. “Eram famílias que nos procuravam porque estavam com necessidade de alimentação. Atendíamos e encaminhávamos para programas sociais e dávamos todo o suporte para que elas tivessem uma base ao longo de um tempo. No meio do processo, muitas arrumavam emprego e sua situação mudava. É lógico que havia algumas situações mais permanentes.”
Ele diz que após a pandemia a miséria cresceu muito. “A proporção de famílias estão passando fome aumentou e o pior de tudo, sem perspectiva de melhoria da situação a curto prazo.” São pessoas que já procuraram emprego e sem conseguir acabam ficando desanimadas. O trabalho da entidade é tentar amenizar essa realidade.
Francis diz que o caso da família de Miguel é um reflexo do que acontece em várias outras. “Tem muita família que não sabe nem a quem pedir ajuda. As instituições também estão sofrendo com diminuição das doações.” Na Cufa essa queda chegou a 85%.
Embora não veja chances de melhora a curto prazo, ele destaca que existem ações paliativas imediatas que precisam ser feitas. “Aumentar o número de pessoas atendidas por programas de transferência de renda. É fundamental, já que tem famílias que nem se cadastram porque não têm conhecimento ou documentação.”
Ele afirma ainda que é necessária uma mobilização social que vá além dos governos para amparar essas famílias. “Já as ações de longo prazo são no fortalecimento da economia. É preciso ter empregos e gerar renda, além da educação, que é um processo longo de capacitação de pessoas. Isso é um processo de algumas décadas. Enquanto isso, é necessário que o governo crie políticas públicas que possam amenizar e fazer com que essas pessoas vão abandonando essa condição precária.” A Cufa atende mensalmente cerca de 1.700 famílias na Grande BH. Para ajudar, acesse: https://www.cufaminas.org/ (SP, MP, MC).
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