Com mais de 33 milhões de pessoas atingidas pela fome no país, o Brasil vive um dilema para a efetivação de políticas públicas que possam erradicar o problema. De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, esse é o maior número desde o início da década de 1990. Para debater sobre a questão, Brasília recebe, hoje, o Slow Filme 2022 — Festival Internacional de Cinema e Alimentação, com o lançamento do livro Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro, organizado por Ana Paula Bortoletto e Tereza Campello. A obra propõe a reflexão sobre múltiplos aspectos da insegurança alimentar e as raízes da fome no Brasil. Ao Correio, as pesquisadoras falam sobre causas, possíveis soluções no enfrentamento ao problema no país e principais questionamentos do livro.
Ana Paula Bortoletto é coordenadora do Programa de Alimentação Saudável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor e integra o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP.Tereza Campello é economista e pesquisadora brasileira. Foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome de 2011 a 2016.
Por que o Brasil voltou ao mapa da fome das Nações Unidas?
Tereza Campello — Uma questão mais importante é destacar que não foi a pandemia [de covid-19]. Os dados que apuramos no livro revelam que na pesquisa de orçamento familiar de 2018, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil teve um aumento expressivo da insegurança alimentar. É lógico que a pandemia agravou muito o quadro, mas é um processo vindo de duas grandes questões. A primeira delas é o aumento do desemprego e a precarização do trabalho. A segunda tem a ver com o desmonte das políticas públicas.
Ana Paula Bortoletto — Uma evidência da questão das políticas públicas é o próprio teto de gastos que desvaloriza toda a legislação de segurança alimentar construída. O Brasil tinha um caminho que funcionava muito, se tornando exemplo de políticas contra a fome internacionalmente. Então, o conjunto das políticas que levaram o Brasil a sair do mapa da fome, que é a geração de emprego, valorização do salário mínimo acima do preço dos alimentos e os programas de transferência de renda, são os mesmos motivos pelos quais voltamos para o mapa da fome.
Como uma potência agropecuária, que alimenta o mundo inteiro, deixa 33 milhões de pessoas sem comida na mesa? Esse questionamento está no livro…
Ana Paula Bortoletto — É uma uma contradição que indica como o sistema alimentar brasileiro ele está organizado para produção de commodities e não para uma política voltada para produção de alimentos para segurança alimentar e abastecimento de uma forma sustentável.
Tereza Campello — O Brasil tem um recorde de população em situação de fome, recorde de produção de grãos, recorde de desmatamento e recorde de obesidade. Parece quatro postos contraditórios, mas que, na verdade, revelam um modelo de país que não consegue alimentar sua população. O país só não produz de forma saudável e sustentável: gera fome, obesidade e desmatamento.
Qual é o grande dilema?
Ana Paula Bortoletto — Apesar de produzirmos muito, não é só um problema de distribuição. A expansão da produção agrícola no Brasil se dá por um caminho que não vai garantir segurança alimentar para a população. Com uma produção voltada para commodities, uma boa parte também é direcionada como matéria prima para produção dos ultraprocessados.
Tereza Campello — Quando você fala em fome, as pessoas pensam em produzir comida e quando se fala em falta de acesso pensam em fazer estradas. Na verdade, o ideal seria que a gente pudesse produzir em volta das cidades e não produzindo num lugar distante para ser distribuído, valorizando a cultura local e a agricultura familiar.
Quais as causas e consequências da crise socioambiental para a insegurança alimentar?
Ana Paula Bortoletto — As consequências principais da saúde vêm dessas mudanças de padrões alimentares, que também estão acontecendo desde antes da pandemia. A substituição do consumo de alimentos tradicionais brasileiros e saudáveis, como por exemplo arroz e feijão, pelos ultraprocessados. A população mais afetada pela insegurança alimentar é a população mais vulnerável, sobretudo crianças.
Tereza Campello — Se fala muito em mudança climática hoje no mundo todo, o aquecimento global é uma agenda central. Na maior parte dos países, a poluição é resultado da estrutura de transporte e da forma como se queima energia. No Brasil, 70% das emissões tem a ver com agricultura e a maior parte delas tem a ver com a pecuária. É um debate que não acontece tão fortemente no mundo, mas aqui as mudanças climáticas estão tão vinculadas aos sistemas alimentares.
Como?
Tereza Campello — Reduzir desmatamento, mudar o modelo de produção e ao mesmo tempo preservar o meio ambiente, reduzindo emissões, isso tudo de forma saudável. O livro de certa forma vem trazer esse alerta. A questão dos sistemas alimentares é central, tanto do ponto de vista econômico e ambiental, quanto de saúde. O livro foi organizado olhando quatro grandes dimensões, uma delas é a saúde.
Como superar o problema da insegurança alimentar?
Tereza Campello — Assumir a fome como uma questão política não é errado. Errado é fazer o uso dessa tragédia no ponto de vista eleitoral. Se eu pudesse elencar a principal contribuição de Josué de Castro é exatamente esta afirmação: a fome é fruto de decisão política, é reflexo do que você faz ou não faz na economia, nas políticas públicas. De certa forma o que está se trazendo no livro é que não foi a pandemia, foi exatamente a falta da construção de políticas públicas.
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