Uma cidade em crescimento, inaugurada apenas 20 antes, sem a infraestrutura necessária e com serviços urbanos precários. Assim era Belo Horizonte em 1917, quando veio à luz a história de Emília Soares (1898-1951), nascida no segundo ano de fundação da nova capital, estudante da Escola Normal que aos 19 anos se tornou David Pereira Soares após cirurgia pioneira de desambiguação de sexo. No Hospital São Vicente de Paulo, hoje Hospital das Clínicas, Emília, diagnosticada com hipospádia (malformação genital que acomete pessoas do sexo masculino), foi operada pelo médico David Corrêa Rabello (1885-1939), mudando de gênero, de nome e de rumo na vida.
A história alcançou grande estardalhaço nos jornais de época e caiu na boca do povo, equivocadamente, como um pioneiro caso de mudança de sexo. Depois da cirurgia realizada em outubro de 1917, David se casou com uma antiga colega da Escola Normal e trabalhou como funcionário público, sempre acompanhado de perto pela imprensa. Em 10 de janeiro de 1918, uma nota social no Diário de Minas caprichou no deboche: “Fez anos ontem o inteligente jovem David Soares. Comemorando este acontecimento íntimo, David (‘née’ Emília) reuniu em sua casa as suas antigas amiguinhas e os seus amigos atuais, aos quais ofereceu um ‘soirée’, que ocorreu animada”.
Apesar de o caso Emília-David ter se tornado marcante pelo ineditismo da operação, ocorrida na então pouco desenvolvida capital mineira, até o fim da década de 1930, seriam registrados mais de 20 casos semelhantes, muitos com grande divulgação na imprensa. Neste quinto episódio da série “Vidas em transição – De Emília a David”, vamos revisitar a primeira cidade planejada do Brasil, que, em 1917, mais se assemelhava a uma “capital em obras”.
Mas como era a capital dos mineiros, inaugurada em 12 de dezembro de 1897 no lugar do antigo Curral del-Rei, aos pés da Serra do Curral? “Era uma cidade incipiente”, resume o historiador Yuri Mello Mesquita, doutorando em história ambiental na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e estudioso da trajetória de BH. “Faltava quase tudo, pois a cidade foi inaugurada às pressas, sem a conclusão de muitas obras. Vários serviços urbanos eram precários, e os problemas aumentavam com o crescimento populacional”, define.
SEM INFRAESTRUTURA Nos idos de 1912, Belo Horizonte tinha, em todo o seu território, 38 mil habitantes. Oito anos depois, já chegava a 55 mil. “Houve um crescimento vertiginoso e não previsto. A comissão construtora da nova capital, chefiada pelo engenheiro Aarão Reis (1853-1936), tinha planejado a expansão ‘de dentro para fora’, ou seja, da zona urbana (dentro dos limites da Avenida do Contorno) para a zona suburbana, onde foram planejadas as colônias agrícolas, voltadas para abastecimento da população. Mas ocorreu movimento inverso. Tanto que, na década de 1940, eram 200 mil habitantes e, na década de 1960, cerca de 1 milhão.”
Num cenário, portanto, de precariedade urbana, a cidade enfrentava uma série de problemas. “As ruas não eram calçadas, daí haver muita poeira. Assim, no verão, as vias públicas ficavam lamacentas, ao contrário dos meses de inverno, quando a seca imperava. Também na estação chuvosa eram comuns grandes enchentes, com transbordamento do Córrego do Acaba Mundo, do Ribeirão Arrudas e de outros cursos d’águas que cortam a cidade”, explica Yuri Mesquita.
Outros dramas urbanos eram frequentes e atazanavam a vida dos primeiros belo-horizontinos, dos moradores da antiga capital de Minas, Ouro Preto, que vieram transferidos para BH, e dos imigrantes que chegavam em busca de oportunidades. “Não havia iluminação pública direito, o projeto de arborização ficou por terminar, havia muitos lotes vazios e as autoridades não fizeram as galerias subterrâneas, conforme previsto no projeto de construção”, enumera o historiador. “Então, os esgotos domésticos eram lançados nos córregos, sem tratamento, onde havia rede pública de esgotamento. Mas a cidade tinha redes informais de esgoto, que pioravam a condição sanitária do município.”
CRISE ECONÔMICA E, se na “economia doméstica” ainda faltava muito para pôr ordem na casa, maus ventos que sopravam da Europa não ajudavam na tarefa. BH, assim como o restante do Brasil, sofria com reflexos da Grande Guerra, como era então chamada a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Segundo Yuri Mesquita, foram tempos muito difíceis para a população, especialmente no abastecimento de alimentos.
“Embora BH fosse a capital de Minas, não tinha autonomia administrativa, dependendo diretamente das decisões do governo estadual. Para se ter uma ideia da situação, em 20 anos, a cidade teve nada menos que 13 prefeitos, alguns com curtíssimo mandato, pois eram nomeados, e não eleitos. O primeiro pleito se deu apenas em 1936, assim mesmo para a Câmara Municipal”, ressalta.
Ainda que aos trancos, como mostra a história, Belo Horizonte cresceu (não como planejado), se estruturou (não tanto quanto necessário), e assumiu o posto de terceira capital do Sudeste. Hoje, um giro pelas ruas da metrópole de mais de 2,7 milhões de habitantes ainda revela prédios da época da construção, como alguns edifícios do conjunto arquitetônico da Praça da Liberdade, na Região Centro-Sul.
Outros imóveis sumiram do mapa, devido à pressão da especulação imobiliária sobre o patrimônio edificado. Faz parte da lista de perdas a casa onde morou o médico David Corrêa Rabello, que assombraria a sociedade da época com as operações de “mudança de sexo” – na verdade, intervenções para desambiguação de órgãos genitais, mas que efetivamente representavam para os pacientes uma transição de gênero.
O imóvel onde vivia e clinicava o renomado cirurgião, na esquina da Avenida João Pinheiro com a Rua Bernardo Guimarães, vizinho ao Grupo Escolar Afonso Pena, que hoje ainda funciona como escola estadual, deu lugar a um prédio. “O consultório dele ficava no porão da casa, mas era um porão mais alto. Eu vi o doutor Rabello algumas vezes, quando voltava para casa do Grupo Escolar Afonso Pena”, recorda Maria Amélia Amaral Teixeira de Salles, hoje com 91 anos, nascida e criada em BH.
Hoje, quem sobe a avenida até a esquina com a Praça da Liberdade ainda pode ver o primeiro sinal de trânsito de Belo Horizonte, colocado no cruzamento da Rua Gonçalves Dias com a Avenida João Pinheiro. Ele data de 1929. Alvo de várias batidas de veículos, a peça é a deixa para o historiador Yuri Mello Mesquita falar sobre o trânsito na BH das primeiras décadas. “Os veículos como propriedade particular só entraram em circulação, de fato, na década de 1940. Nos anos 1910 e 1920, havia bondes, trens, poucos ônibus e charretes para o deslocamento dos moradores”, afirma.
REFLEXÃO Ao mencionar as primeiras décadas de Belo Horizonte, Yuri faz uma reflexão sobre a “metropolização” que ocorre a partir de 1930, após a crise de 1929 e intenso fluxo populacional do interior para as capitais, registrado em toda a América Latina. “Belo Horizonte se metropolizou e adquiriu características e contornos que ainda hoje definem sua conformação social e espacial. A cidade cresceu em ritmo acelerado e os problemas urbanos pioraram: como a falta d’água, as enchentes, a deficiência no recolhimento de lixo, a poluição, o desafio no abastecimento de gêneros alimentícios, a falta de cemitérios, o transporte público insuficiente e as doenças gástricas, consequência direta das deficiências sanitárias.”
Caso fizesse uma viagem pelo túnel do tempo no sentido inverso ao desta reportagem, o funcionário público David, criado como Emília até os 19 anos e cuja transição de gênero inquietou a sociedade da época, talvez se surpreendesse – assim como seus contemporâneos – ao constatar que muitos dos problemas da então incipiente Belo Horizonte de 1917 ainda habitam a capital, mais de 100 anos depois.
Vidas em transição
Ontem: O mundo em convulsão no qual a sociedade de BH acompanhava pelo noticiário a primeira cirurgia de “mudança de sexo”
Amanhã: A outra operação histórica do doutor Rabello: imagens revelam mais sobre as vidas do médico e de seu paciente mais conhecido
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