Violência

"Estado brasileiro falhou", diz especialista sobre família mantida em cárcere

Secretaria Municipal iniciou campanha para ajudar a mãe e os dois filhos resgatados após 17 anos em cárcere privado no Rio de Janeiro

Isadora Albernaz*
postado em 01/08/2022 22:22
 (crédito: PMRJ/ reprodução)
(crédito: PMRJ/ reprodução)

A Secretaria Municipal de Assistência Social da cidade do Rio de Janeiro iniciou, nesta segunda-feira (1º/8), uma campanha para arrecadar recursos para a família mantida em cárcere privado durante 17 anos na zona Oeste da capital carioca. De acordo com a prefeitura, a situação das três vítimas - mãe e dois filhos - é tão grave que os dois jovens adultos - uma de 22 anos e o outro de 19 - sequer têm documentos de identidade.

Segundo a administração, a mãe recebeu o Cartão Protege, que dá direito a auxílio no valor de R$ 250, distribuído pelo governo em casos de calamidade pública. Os servidores da assistência social da cidade estão encarregados de providenciar a documentação pessoal das vítimas e inscrever a família no CadÚnico, que garantirá o recebimento de benefícios sociais como o Auxílio Brasil – programa que substituiu o Bolsa Família. Além disso, será solicitado ao INSS o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Depois de ter alta do hospital, o que ocorreu na última sexta-feira (29), um dia após o resgate, a família foi para a casa de parentes. A prefeitura carioca informou que alimentos e itens pessoais, como roupas, além de itens de higiene são os mais necessários. As doações podem ser feitas em todas as 27 unidades dos Centros de Referência em Assistência Social (Cras) do Rio de Janeiro.

"O Estado brasileiro falhou"

De acordo com a advogada criminalista Luisa Muchon, o caso se enquadra na forma mais grave prevista para o crime de cárcere privado no Código Penal Brasileiro. “A pena é de 2 a 8 anos. Quando resulta em sofrimento físico, moral, psicológico – que é o que aconteceu com a mulher e seus filhos – é enquadrado na modalidade mais grave de reclusão. O fato de o autor ter parentesco com as vítimas também qualifica o crime de cárcere privado”, explicou ela.

Foi revelado ainda que a situação vivida pelas três vítimas resgatadas na quinta-feira (28/7) já havia sido denunciada dois anos atrás. Documentos provam que tanto a Polícia Civil do Rio de Janeiro quanto o Ministério Público carioca receberam denúncias do caso. As corregedorias de ambas instituições abriram investigações para apurar a situação.

Para Muchon, as duas instituições poderiam ter agido mais cedo. “Me parece que cada instituição foi lançada à sorte da outra. Cada uma ficou esperando a outra tomar providências, e nada fizeram. Entendo, sim, que houve uma inércia estatal”, afirma a advogada criminalista.

Hayeska Costa, doutora em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB),avalia que o Estado brasileiro falhou com a família carioca. "Houve uma falha de comunicação, de entendimento e de interpretação. Falha na capacidade do Estado de atuar conjuntamente, com políticas setoriais das mais diversas, como Justiça, segurança, e educação. Houve múltiplas violações de direitos. O que podemos observar, nesse caso, é a sobreposição de violações.”

Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) revelam que, apenas em 2022, foram registradas 4.506 denúncias de cárcere privado no Brasil. Para Hayeska Costa, a solução para o problema passa pelo investimento no fortalecimento de políticas públicas. “É preciso fortalecer a rede e a busca ativa de situação de riscos, não esperar que as vítimas venham até a assistência social. No caso de cárcere, as vítimas não têm condições de buscar ajuda. Então, é o Estado que precisa ir atrás delas, por meio da busca ativa. O Estado na direção do cidadão, e não o inverso”, argumenta.

Maus-tratos

Assistentes sociais que estiveram no Hospital Municipal da Rocha Faria, no Rio de Janeiro, relataram que os dois jovens resgatados com a mãe não conseguem sequer caminhar sozinhos devido aos maus-tratos sofridos. De acordo com os servidores, eles ainda precisam usar fraldas.

Em depoimento na Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) de Campo Grande, na zona Oeste da capital carioca, a mulher de 40 anos mantida em cárcere privado declarou que sempre foi agredida pelo marido e autor do crime, Luiz Antônio Santos Silva, 49 anos. "Você tem que ficar comigo até o fim. Se você for embora, só sai daqui morta", dizia ele. Segundo ela, Luiz Antônio era extremamente "agressivo e violento”. Os dois estavam juntos há 23 anos e são primos de primeiro grau.

Durante perícia realizada no sábado (30), cães farejadores da Polícia Civil encontraram material biológico na casa em que a família era mantida em cativeiro. As autoridades investigam se o material trata-se de um corpo em decomposição. O conteúdo foi enviado ao Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) para passar por perícia.

Além disso, a polícia constatou que o local onde as três pessoas estavam encarceradas era insalubre, com muita sujeira e pouca iluminação e ventilação. Havia comida em bom estado na residência, o que pode ser um indicativo de tortura.

Luiz Antônio Santos Silva foi indiciado pelos crimes de cárcere privado, tortura e maus-tratos e permanece preso, de forma preventiva, desde sábado (30). A delegada da Deam pretende ainda indiciá-lo por abuso psicológico. Apesar de ter ficado em silêncio perante a Justiça, o criminoso contou, informalmente, para policiais militares, que mantinha os três em cárcere para preservá-los. Ainda segundo ele, os dois filhos têm deficiência mental. A mãe solicitou medida protetiva, prevista na Lei Maria da Penha, para proteger os dois jovens e a ela própria.

 

*Estagiária sob a supervisão de Mariana Niederauer

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação