ENTREVISTA

"Não podemos considerar a pandemia superada", diz pesquisadora da Fiocruz

Uma das principais referências no combate à covid-19, a pneumologista Margareth Dalcolmo reitera a necessidade de ampliar a cobertura vacinal da população, especialmente crianças, e adverte que medidas como o uso de máscaras continuam imprescindíveis

Taísa Medeiros
postado em 01/08/2022 05:57 / atualizado em 01/08/2022 06:19
A pesquisadora destaca que, apesar de a maior parte da população agir de maneira despreocupada, o Brasil ainda não superou a pandemia e deve preocupar-se, principalmente, com a população infantil -  (crédito: Peter Ilicciev / Ag. Enquadrar)
A pesquisadora destaca que, apesar de a maior parte da população agir de maneira despreocupada, o Brasil ainda não superou a pandemia e deve preocupar-se, principalmente, com a população infantil - (crédito: Peter Ilicciev / Ag. Enquadrar)

Vários estados brasileiros flexibilizaram, nos últimos meses, as medidas de prevenção contra a covid-19. Como consequência, leva-se hoje no Brasil uma vida semelhante à observada em tempos pré-covid, sem uso de máscaras, com grandes aglomerações normalizadas — cenas que, há um ano, seriam inimagináveis. Na contramão dessas decisões está parte significativa dos cientistas brasileiros, como a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo.

"Nunca foi tão importante manter hábitos não-farmacológicos. O uso de máscaras em locais fechados ainda é muito relevante, porque as cepas hoje circulantes com predomínio têm escape vacinal", salienta a médica. Dalcolmo é uma das mais respeitadas lideranças da ciência atuantes no combate à pandemia. Envolveu-se diuturnamente na missão de conscientizar a população brasileira sobre a prevenção à covid-19 desde os primeiros dias, quando chegou, inclusive, a prestar consultoria técnica ao então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

A pesquisadora destaca que, apesar de a maior parte da população agir de maneira despreocupada, o Brasil ainda não superou a pandemia e deve preocupar-se, principalmente, com a população infantil. "Os estudos nessa população realmente demoram. Eles são mais complexos de serem feitos, do ponto de vista ético. Mas hoje nós já temos vacinas aprovadas no Brasil", ressalta. "É muito estranho que as famílias tenham sido inoculadas com esse vírus do medo", provoca a médica.

O Brasil superou a pandemia, ou a gente ainda tem um caminho pela frente?

Nós ainda não podemos considerar a pandemia da covid-19 superada no Brasil por várias razões. Primeiro, estamos diante de uma doença nova, com aparecimento de novas variantes. Hoje, praticamente há uma variante ou uma subvariante que aparece a cada duas semanas. Algumas dessas, comoa cepa BA5, que predomina no Brasil, de alta transmissão e com o que chamamos de escape vacinal. Então, o uso de máscaras em locais fechados ainda é muito relevante. A segunda razão é que, a despeito de uma boa taxa de vacinação, não alcançamos com as doses de reforço, que são as terceira e quarta doses, um percentual realmente importante na população brasileira. Em terceiro lugar, precisamos urgentemente vacinar a população pediátrica. A despeito de as vacinas terem se mostrado extremamente protetoras nas crianças, essa hesitação vacinal por parte de muitas famílias é muito grave e contraria uma tradição muito arraigada na nossa população, que é gostar e confiar nas vacinas.

Por que isso ocorre?

A população brasileira sempre aderiu de maneira muito saudável às vacinas oferecidas pelo SUS às nossas crianças, de modo que considero muito importante que a imprensa e todos nós, médicos, nos manifestemos com veemência, instando as famílias a levarem as suas crianças para serem vacinadas e que não deem ouvidos a essa quantidade de notícias falaciosas que têm sido disseminadas contra as vacinas nas crianças, inclusive por alguns médicos, o que eu considero um desserviço enorme à nossa população já tão sofrida e amedrontada.

Existe a chance de a gente ter alguma variante mais forte ainda das já conhecidas?

A probabilidade é pequena, porque as variantes e subvariantes não têm, até o momento, demonstrado uma mortalidade maior. E, se alguém duvidava do efeito protetor contra formas graves, hospitalizações e mortes pela covid-19 por força da aplicação das vacinas, essa dúvida caiu por terra. Os dados falam por si. A curva de diminuição é tão dramática, os hospitais se esvaziaram, o número de mortes que já chegou a mais de 3 mil pessoas por dia, diminuiu muito, embora ainda seja um número relevante, porque cada vida humana conta. Quem está internado hoje ou, eventualmente, morrendo ou são pessoas não vacinadas, ou portadoras de uma condição clínica muito desfavorável do ponto de vista imunológico.

Muitos pais ficaram com medo de vacinar as crianças alegando que os estudos não eram conclusivos, que não se sabia exatamente os efeitos da vacina. Ao mesmo tempo, não se sabe exatamente quais são os efeitos, a longo prazo, da covid nas crianças.

O Brasil teve um dos piores desempenhos e uma das mais altas letalidades pela covid-19 em população pediátrica. Nós tivemos quase 3 mil óbitos em crianças abaixo de cinco anos de idade, o que é absolutamente impressionante. As crianças precisam ser protegidas pelas vacinas. Os estudos nessa população realmente demoram. Eles são mais complexos de serem feitos, do ponto de vista ético, mas já temos vacinas aprovadas no Brasil, tanto a da Pfizer quanto recentemente a Corona Vac para a população entre 3 e 5 anos de idade. É muito estranho que essas famílias tenham sido inoculadas com esse vírus do medo, diante de uma um programa de vacinação tão incorporado à nossa cultura. Eu nunca vi pais e mães se perguntarem o que tinha numa vacina chamada pentavalente, que a gente aplica nos bebês abaixo de um ano de idade. Então, é um desserviço atribuir às vacinas efeitos nocivos que absolutamente elas não têm. O que não sabemos até agora, isso sim, é quais serão os efeitos a médio e longo prazos que a covid-19 poderá causar nessa população pediátrica, como já sabemos que ela causa na população adulta, por exemplo, com a chamada síndrome da covid longa. Hoje, o maior desafio da medicina é lidar com essas pessoas que precisam de reabilitação, muitas vezes complexa, para ganharem de volta o mínimo de normalidade em suas vidas.

Os efeitos neurológicos ainda estão sendo estudados.

Neurológicos, respiratórios, cardiovasculares e, inclusive, psiquiátricos. O número de pessoas que precisam de assistência psicológica e psiquiátrica pelo trauma de terem ficado internados por um longo tempo, em confinamento, é grande. O vírus afeta o sistema nervoso central, o que pode ocasionar mudança de comportamento, um quadro neurológico prolongado, neuropatias periféricas prolongadas. Tudo isso são efeitos que hoje nós estamos lidando nos serviços de reabilitação pós-covid.

Esses efeitos ainda serão sentidos por décadas?

Não podemos dizer por quanto tempo, nem se eles serão indeléveis. Não sabemos, porque ainda não temos o necessário recuo histórico para essa análise. Então, só o tempo dirá se eles são indeléveis ou temporários.

Apesar dos constantes cortes na saúde pública, o SUS foi essencial para o combate da pandemia. Como a senhora vê a falta de valorização da saúde no país?

Em 13 de março de 2020, dei minha primeira entrevista pública e, naquele momento, disse, convicta, que nós tínhamos duas armas para enfrentar a tsunami que estava chegando ao Brasil. A primeira e mais nobre delas era o SUS. Sem o SUS, a tragédia teria sido muito maior. A segunda seria o distanciamento físico e social, que era uma arma absolutamente fundamental em se tratando de uma virose aguda de transmissão respiratória. Por conta de todas as fragilidades, subfinanciamento, carência de recursos humanos, enfim, tivemos uma operacionalização que muitas vezes deixou a desejar. Mas, sem o SUS, a tragédia teria sido muito pior.

Houve falta de sincronia entre o poder público e as demandas de saúde? Porque a gente viu atraso na vacinação, diversos percalços que parecem uma certa negligência...

Desde o início, ficou claro que, contra esse tipo de doença, com alta capacidade de transmissão, a arma seriam as vacinas, porque virose aguda se resolve com vacina, tradicionalmente. E o Brasil viveu um paradoxo. Foi o país que desenvolveu estudos de fase três para vacinas de grande qualidade, como foi com a CoronaVac, com a Pfizer, com a Janssen e com a AstraZeneca. Foi o país que mais colocou voluntários nos estudos de fase três, e viveu a contradição de ter um embate entre uma retórica paradoxal de algumas autoridades e a necessidade óbvia de vacinar a população. Nós poderíamos ter começado a vacinar antes do que efetivamente começamos. Esse embate retórico entre a ciência brasileira e o discurso oficial, sem dúvida, não foi positivo no resultado.

A Procuradoria Geral da República desqualificou as investigações da CPI da covid. Não houve responsabilização. Por que a saúde segue sendo negligenciada, mesmo com todas as evidências?

Eu não sei se não haverá responsabilização. Sem dúvida nenhuma, caberá à sociedade brasileira ter a consciência cívica do que é necessário e reivindicar da maneira adequada. Politicamente, eu não saberia dizer em que isso vai resultar. Agora, sem dúvida nenhuma, mais do que a responsabilização retrógrada daquilo que não aconteceu, temos que ter um olhar pra frente. É como conduzir o problema daqui pra frente num momento difícil, num ano eleitoral. Onde as tensões obviamente tendem a se acirrar, e nós precisamos ter a serenidade, a eficiência que os serviços de saúde naturalmente exigem nesse momento.

O debate eleitoral tem se concentrado na economia. Aparentemente, a saúde pública está relegada a segundo plano.

O que é um equívoco, porque saúde pública e economia são basicamente a mesma coisa. Quando você investe em saúde você está fazendo um investimento nobre em economia, porque as pessoas adoecerem menos nas fases mais produtivas de suas vidas, trabalharem, produzirem, estudarem, produzirem conhecimento técnico e científico, é absolutamente fundamental. O equívoco está na maneira de olhar. Investir em saúde e educação não é gastar. É olhar o dia de amanhã, o futuro do país, as novas gerações.

Eu acho que o Brasil está vivendo um momento extremamente dramático, com várias contradições. Uma população que envelhece. Nós hoje temos uma população acima de 60 anos no Brasil que já representa um número muito importante. Nós precisamos cuidar dessas pessoas, ter uma visão para as doenças crônicas que comprometem as pessoas de mais idade. Inseri-las socialmente de uma maneira adequada. Isso exige uma saúde pública muito bem conduzida e com muita eficiência. Outras questões fundamentais, como saneamento básico, estão diretamente relacionadas à economia. Então, olhar isso de maneira dicotomizada não me parece correto.

Por quanto tempo o Brasil precisará de reforço na vacinação contra a covid-19? E por quanto tempo a doença permanecerá nas nossas vidas?

São duas questões aí. Primeiro, haverá, sem dúvida, uma nova leva de vacinas de segunda geração. Algumas já estão sendo fabricadas com a proteína spike, da cepa Omicron, e não mais com as cepas originais, com a qual foram formuladas todas as vacinas que nós usamos até o momento. Acho que nós ainda precisaremos receber uma dose, pelo menos, de vacina, com as vacinas de segunda geração quando forem liberadas. O vírus SARS-CoV-2 não deve desaparecer das nossas vidas, ele deverá permanecer num comportamento epidemiológico endêmico. Ou seja, vamos ter casos de vez em quando. O vírus já faz parte do diagnóstico diferencial das viroses respiratórias.

A senhora participou, na semana passada, do encontro da SBPC na UnB. Como está a situação da ciência no Brasil?

Nunca foi tão necessário que governantes e autoridades se sensibilizassem para o fato de que investimento em ciência, tecnologia e inovação é um investimento mais nobre. Enquanto isso for equivocadamente olhado como gasto, e não como um olhar para o nosso amanhã, estaremos perdurando no que eu chamaria de um erro de visão de país. Foi muito simbólica essa SBPC presencial realizada nas dependências da UnB nesse momento. Acho que, para a universidade, que já sofreu tanto nas últimas décadas, no Brasil, isso representa muito. Espero que essas discussões possam aumentar o nível de consciência dos jovens ali presentes.

A OMS definiu como preocupante o avanço da varíola dos macacos no Brasil. Como está a doença no mundo?

É um outro nível, outra doença. Mas de qualquer maneira, acho que a OMS fez um alerta correto e oportuno. Hoje, alguns países se ressentem de não ter mantido estoques adequados de vacinas, como não temos quantidades suficiente se precisarmos de uma vacinação em maior âmbito, de algumas populações ou grupos de risco. Acho que nós precisaremos, sim, vacinar alguns grupos de população com a vacina da varíola, e o Brasil seguramente é um país que tem condições pra fabricas a vacina. Isso depende de vencer alguns entraves técnicos, como, por exemplo, ter o vírus original para que a vacina seja produzida. O Butantan e a Fiocruz são instituições públicas perfeitamente qualificadas para fabricar a vacina da varíola.

Quais são os principais sintomas dessa doença pouco conhecida no Brasil? Que cuidados devem ser adotados?

São sintomas de uma de uma doença geral. Ela chama a atenção quando existe a suspeita epidemiológica de que tenha havido contato com alguém sabidamente doente. Quem teve contato deve ser observado, antes mesmo do aparecimento das lesões cutâneas. Como o período de incubação é relativamente longo, de três a quatro semanas, a pessoa tem que saber se teve contato com alguém doente ou esteve num ambiente onde houve outros casos. O diagnóstico precoce vai levar ao isolamento. O isolamento deve ser de quatro semanas, que é o período em que podem aparecer lesões cutâneas, que são altamente contagiosas. A maior parte dos casos não tem sido grave, são muito poucas mortes até o momento. É uma doença que, eventualmente, pode ser controlada por vacina, se aumentar o número de casos ou declarada essa necessidade.

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