Quando desembarcou no Brasil com a família, Sahar* trazia consigo apenas uma mala com uma ou duas trocas de roupa. A juíza saiu do Afeganistão às pressas no segundo semestre do ano passado fugindo do Talebã e teve que deixar tudo para trás.
Assim como muitas outras mulheres que ocupavam cargos no Judiciário afegão antes da tomada do poder pelo grupo fundamentalista em agosto de 2021, ela temia que seu trabalho pudesse representar uma ameaça à sua vida e de sua família.
"Tive que deixar tudo que construí no Afeganistão para trás: minha casa, meus bens e parte da minha família", relatou a juíza em entrevista à BBC News Brasil.
"Eu tinha uma vida completa e perdi tudo."
Nos últimos 20 anos, 270 mulheres atuaram como magistradas no Afeganistão. Boa parte delas conseguiu fugir com o auxílio da Associação Internacional de Juízas Mulheres (IAWJ, na sigla em inglês) e se refugiou em diversos países ao redor do globo.
O Brasil concedeu visto humanitário a sete dessas juízas e a três magistrados do sexo masculino. Todos desembarcaram no país em outubro passado e foram recebidos pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Mas cerca de 90 juízas ainda estão presas em seu país, escondidas.
'Só conseguia pensar que precisava sair dali'
Em seu relato, Sahar detalha os momentos de medo e desespero que antecederam sua fuga do Afeganistão.
A juíza e sua família tiveram que deixar sua casa para se esconder em outro local após a tomada do poder pelo Talebã.
Com a queda do governo afegão, juízes de todo o país passaram a ser perseguidos por sua participação em julgamentos e condenações de membros do grupo extremista durante o período da ocupação americana.
Os talebãs ainda abriram prisões em todo o país, libertando homens que os magistrados haviam encarcerado.
A vida das mulheres também mudou drasticamente com a instauração do regime. Meninas foram proibidas de receber educação secundária, o ministério da mulher foi dissolvido e em muitos casos funcionárias foram impedidas de voltar ao trabalho.
"Grupos como o Talebã, o Daesh (Estado Islâmico) e outros não aceitam a justiça feita pelas mulheres", diz Sahar.
"A situação se tornou realmente desesperadora quando o Talebã passou a vasculhar casa a casa de todos os juízes. Eles invadiram a Suprema Corte e conseguiram acesso a todo tipo de informação sobre nós, como fotos, endereço e documentos."
"Foi aí que percebemos que realmente não poderíamos continuar no Afeganistão, pois seria muito perigoso", relata.
A juíza se refugiou inicialmente na casa de parentes. "Ficamos trancados sem poder sair. Não podíamos voltar para nosso apartamento nem para pegar nossas coisas, pois os talebãs estavam fazendo rondas no nosso quarteirão", conta.
"Foi muito difícil. Eu não conseguia cozinhar, lavar roupa ou fazer mais nada, só conseguia pensar que precisava sair dali."
Dois meses se passaram até que Sahar recebeu a notícia de que seria resgatada e receberia refúgio no Brasil.
"Denunciamos nossa situação para a IAWJ e eles entraram em contato com vários países em busca de ajuda e vistos para nós juízas", diz. "Quando chegou a minha vez me disseram que iríamos para o Brasil".
A magistrada se mudou acompanhada da família mais próxima. Por questões de segurança, os detalhes da operação que os tirou do Afeganistão e trouxe ao Brasil não foram revelados.
"Eles disseram que não poderíamos levar muitas coisas conosco, porque tudo tinha que ser discreto. Então não trouxemos quase nada, talvez só uma ou duas trocas de roupa", relatou Sahar à BBC News Brasil.
"Preciso me controlar para não chorar quando lembro do dia que fomos embora. Foi uma grande desgraça para nós".
"Tínhamos uma boa casa, um bom salário e nossa família no Afeganistão e deixamos tudo para trás. Foi uma situação muito ruim, mal consigo descrever em palavras".
Medo do que ficou para trás
Em seus mais de quatro anos como magistrada no Afeganistão, Sahar se dedicava principalmente a processos criminais.
A juíza se diz orgulhosa de seu trabalho, especialmente nos casos relacionados à segurança e bem-estar de outras mulheres.
"É preciso que haja espaço para as mulheres serem juízas, pois uma mulher confia na outra. As mulheres que iam aos tribunais conseguiam se abrir mais conosco", relata.
"Eu era muito feliz no meu trabalho. Desde pequena sonhava em poder ser juíza e fazer justiça pelas famílias e pelas crianças."
Sahar afirma não ter julgado nenhum caso diretamente relacionado ao Talebã, mas admite que pode ter participado de julgamentos por crimes comuns cometidos por membros do grupo.
"Eu julgava todo tipo de caso, como assassinato, sequestro, roubo, corrupção, casos de família."
Por seu trabalho, ela afirma temer pela vida de alguns de seus familiares que ainda estão no Afeganistão.
"Tenho medo porque eles têm todo tipo de dados e informações sobre nós. Eles podem estar em perigo", diz. "Quando saímos do Afeganistão todos se mudaram e se esconderam em outros lugares."
"Falo às vezes com eles, mas não muito pois acho que nossos números podem estar sendo hackeados."
E mesmo a quilômetros de distância do Afeganistão, Sahar diz ainda sentir medo do que deixou para trás.
"Às vezes ainda tenho medo, pois sou humana e penso demais nas coisas."
A vida no Brasil
Sahar e os outros nove magistrados que se refugiaram no Brasil receberam vistos humanitários emitidos com base em uma portaria interministerial publicada em setembro de 2021 pelos ministérios das Relações Exteriores e da Justiça e Segurança Pública.
Entre juízes e familiares, 26 pessoas desembarcaram no país em outubro passado.
"Todos chegaram muito assustados no Brasil, preocupados com a segurança e sem falar uma palavra de português", relata Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros que coordenou o acolhimento das famílias.
Para que pudessem recomeçar suas vidas, todos receberam moradia, alimentação e atendimento médico providenciados pela AMB e seus parceiros.
Os magistrados e suas famílias também estão estudando inglês e português e seus filhos ganharam bolsas de estudo em escolas locais.
"Todas as juízas que acolhemos guardam cicatrizes profundas por tudo que passaram e uma dor grande pela perda. É um processo de adaptação intenso", diz Gil. "Mantemos contato periódico com as associações internacionais que acolheram juízas em outros países e recebemos relatos semelhantes."
'Penso todos os dias no meu país'
Após um período inicial vivendo em acomodações militares, Sahar mora agora com toda a família em um imóvel alugado.
Ela foi empregada como auxiliar jurídica por um escritório de advocacia, onde faz pesquisa para casos relacionados à imigração.
A juíza afirma que, antes de se mudar para o Brasil, conhecia pouquíssimo sobre o país. "Não tinha ouvido falar muito sobre o povo, a cultura ou a língua", conta.
E apesar de estar muito grata pela recepção calorosa e ajuda que recebeu por aqui, Sahar afirma não passar um dia sem pensar em voltar para casa.
"Penso todos os dias no meu país, na minha família e no meu antigo trabalho. O Afeganistão é minha terra natal e sinto falta todos os dias."
"Não posso dizer que estou desfrutando do meu tempo no Brasil, porque essa não é uma situação nada fácil", diz a juíza. "Mas estamos muito gratos com toda ajuda que recebemos. O povo aqui é muito amigável, assim como o povo afegão."
"Espero que tudo fique bem para que eu possa voltar. Sei que a situação não está nada fácil, mas se Alá quiser talvez tudo se resolverá em breve."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62314089
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