Assassinato Dom e Bruno

Beto Marubo, da Univaja, escreve carta de despedida a Bruno Pereira

Após um mês do brutal assassinato do indigenista Bruno Araújo e do jornalista britânico Dom Philips, a Univaja diz que a pressão nacional e internacional não pode parar

Isabel Dourado*
postado em 06/07/2022 19:26
"Agora, o mundo inteiro sabe que, no Vale do Javari, reina a omissão, a inação e a política negacionista", diz trecho da carta - (crédito: Divulgação/Univaja)

Um mês após o brutal assassinato do indigenista Bruno Araújo e do jornalista britânico Dom Philips, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) pede que a pressão nacional e internacional não pare. Eles cobram a apuração do assassinato e a prisão do mandante do crime. Segundo o procurador jurídico da Univaja, Eliesio Marubo, a omissão do poder público leva os indígenas a temerem a ocorrência de novos crimes.

“Trinta dias depois do assassinato de Dom e Bruno na região do Vale do Javari continuamos na mesma sensação de insegurança de antes conforme a Univaja já tinha previsto em outro momento. As autoridades nada fizeram para fortalecer a segurança na região. A polícia Federal ainda investiga o caso e autoridades policiais têm feito conclusões pessoais sobre o desfecho do crime", diz o procurador jurídico. 

Além disso, Eliesio Marubo disse que a Univaja acredita que é possível ocorrer um aprofundamento das investigações. No entanto, ele disse que é necessário existir um querer político para que seja apurado quem mandou matar Bruno e Dom na região do Vale do Javari.

Na terça-feira (5/7), Beto Marubo, da Univaja, dedicou uma carta em homenagem ao indigenista Bruno Pereira, que era seu amigo próximo, e ao jornalista britânico Dominic Phillips. Confira a carta: 


Grandão,

O acampamento está pronto, feito com palhas de cocão. Ouço o barulho das grandes árvores vindo do leste. Os macacos zogue-zogue anunciam o amanhecer. A terra enlameada do acampamento logo estará vazia, pois as equipes de expedição seguirão viagem rio acima. Os igarapés nas margens dos rios Curuçá e Itaquaí estão secos, onde um bando de queixadas passou ontem. A anta assobia solitária pelo rio Jaquirana. A Jacutinga canta triste pelas cabeceiras do Jutaí lá pelas bandas do rio Ituí. Os isolados estão tocando suas flautas, feitas de ossos de macaco preto. Os Korubo estão querendo retornar às suas terras no rio Coari. Os Matis voltaram às pazes com os Korubo, e agora planejam tomar cipó tatxik nas cabeceiras do rio Branco.

Ah, Grandão! Meus parentes Marubo estão nos convidando para tomar rapé nas cabeceiras do rio Kumãya. Os Kamamary querem tomar Ayahuasca (rami) nas aldeias do rio Itaquaí. Os Mayoruna querem planejar andanças pelos seus territórios ancestrais, no rio Jaquirana. Infelizmente, com a sua passagem, nós conseguimos! Conseguimos com que todos vejam nossas mazelas. Expomos quão esquecidos nos encontramos, nós, povos indígenas do Vale do Javari. Um monte de pessoas no Brasil e ao redor do mundo inteiro estão falando sobre você, Grandão, e sobre o Dom.

Agora, o mundo inteiro sabe que, no Vale do Javari, reina a omissão, a inação e a política negacionista, a ausência total de Estado em nossa terra, mesmo após um mês do seu assassinato. Sabem até que a Fundação Nacional do Índio (Funai) perseguia e continua perseguindo você. O atual presidente desse país tentou de todas as formas desconstruir a sua história, mas ela se manterá por gerações, pois nós, povos do Vale do Javari, sabemos que você morreu por nós, pela nossa terra. Nunca vamos nos esquecer disso. A sua luta continuará através de nós e de nossas gerações.

Já arrumei a minha mochila. Já até calcei as minhas botas - aquelas que você tanto desdenhava, mas elas são boas, são impermeáveis. Afiei o meu facão - aquele que você também achava pesado demais para uma expedição. Já tomamos o café amargo. Já aconteceu uma primeira rodada de rapé. Todos estão prontos para a partida. Temos de seguir viagem, Grandão. Daqui a pouco o sol ficará quente demais. Há muitos troncos de árvores espalhados em nosso trajeto. Teremos de seguir, tristes, sem a sua companhia. Fique bem, prossiga a sua expedição pelas matas da minha terra. Vamos nos falando pelos sonhos da ayahuasca.

Oshatso, Grandão!

*Estagiária sob supervisão de Pedro Grigori 

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