Os sucessivos casos de violações de direitos das mulheres, divulgados nas últimas semanas, não foram suficientes para que autoridades com poder para criar normas adotassem medidas para reverter o cenário. Ao contrário, três dias após a carta aberta da atriz Klara Castanho — que decidiu doar uma criança gerada por ela em consequência de um estupro — denunciar múltiplas violências contra ela, inclusive praticadas por profissionais da saúde, o Ministério da Saúde realizou audiência pública para debater uma cartilha, voltada à "Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento", que sugere "não existir aborto legal".
Em vez de contribuir para o debate de melhorias no atendimento às mulheres que decidem pelo aborto nos três casos previstos em lei — quando a gravidez é resultante de um estupro; quando há risco de vida para a mulher causado pela gravidez; e se o feto for anencefálico, ou seja, com má formação cerebral —, o manual sugere que, em casos onde houvesse "excludente de ilicitude" deveriam ser comprovadas a "investigação policial".
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Maus tratos
Ana Teresa Derraik, médica-diretora do Nosso Instituto, ginecologista e obstetra, ressalta que a medida proposta pelo governo expõe ainda mais as mulheres aos maus tratos de profissionais. "As mulheres têm muito medo de serem maltratadas nos serviços de saúde. O que, de uma certa forma, é o que essa cartilha preconiza que se faça, que se desconfie da mulher, que se investigue a mulher. Então, isso é preocupante. Quando a gravidez não tem um desfecho social ou culturalmente aceito, a mulher, vai sofrer algum tipo de violência institucional", explicou.
Derraik ressalta também que o discurso do ministério reforça uma questão cultural brasileira e pode incentivar a repetição dos descuidos dos profissionais que lidam com o tema. "No Brasil, a gente tem muita confusão entre o que é público e o que é privado. Às vezes, eu quero impor a minha fé, a minha crença ou até meus valores, a minha cultura, e não me atenho que esse espaço que tem que ser respeitado quando a gente tem ali uma relação assimétrica de poder", apontou.
Procurado pelo Correio, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, informou que "desenvolve iniciativas com o objetivo de conscientização e prevenção da violência", e destacou o serviço do Ligue 180, que é a Central de Atendimento à Mulher. A ferramenta presta escuta e acolhida qualificada às mulheres em situação de violência. A pasta não sugeriu mais iniciativas às quais as mulheres podem recorrer se sentirem que tiveram direitos violados, limitando-se a afirmar que "reforça o compromisso no combate a todo tipo de violação, e destaca a absoluta intolerância com esse tipo de comportamento abusivo".
A postura da pasta, segundo Lia Zanotto, professora de antropologia da Universidade de Brasília (UnB), comprova o retorno de um movimento ultraconservador que coloca em risco a efetivação dos direitos conquistados pelas mulheres ao longo dos anos.
"A sociedade está dividida. Há um movimento ultraconservador que não se importa com a vida da mulher e para o qual ela tem de ser obediente e controlada. Esse movimento está ganhando força política. Está presente na ideia de que vamos defender a família, e não as mulheres. Está levanndo à misoginia, está dizendo que a mulher tem que obedecer a família, e quem manda, nesse caso, quem é o chefe? Os homens. Não podemos voltar atrás, temos que ir à frente dos direitos humanos", afirma.
Dificuldade na Justiça
Outro caso que também demonstrou uma série de falhas dos profissionais envolvidos foi o da criança de 11 anos, de Santa Catarina, induzida por uma juíza a não aceitar o aborto decorrente de estupro de vunerável. A decisão de não gerar o bebê, nesse caso, é prevista em lei e deveria ser uma escolha da vítima, sem juízo de valor. Amanda Bessoni, advogada criminalista e doutora em direito penal, medicina forense e criminologia pela Universidade de São Paulo (USP), explica que condutas desse tipo ocorrem com frequência no Poder Judiciário.
"Em matéria de leis, temos muitos avanços, novas perspectiva vêm sendo introduzidas, mas é preciso que aqueles que operam essas leis e as aplicam também colaborem para que o combate (à violência) possa ser efetivo. Sem a capacitação dos agentes do Poder Judiciário e do Executivo, muito dificilmente terá um avanço no combate da violência contra a mulher."
Silvia Chakian, promotora de Justiça de Enfrentamento à Violência contra a Mulher do Ministério Público de São Paulo, considera que a construção histórico-social de inferioridade feminina, com a sedimentação de valores discriminatórios sobre as mulheres, teve repercussão na produção jurídica e na visão de agentes públicos sobre como a vítima deveria se comportar. Frisa no entanto, que, os governos tem o dever de exigir a execução da lei.
"As diversas esferas de governo — federal, estaduais, municipais — precisam assumir o dever de diligência criado pela lei Maria da Penha, além de cumprir a agenda de transformações estruturais e de padrões culturais para que haja mudança do quadro. Então, é preciso que os gestores públicos se responsabilizem e exijam políticas públicas que garantam acesso das mulheres aos direitos fundamentais. Essa é a estratégia de redução dos índices de violência", assegura a promotora.
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