A Polícia Federal (PF) afirmou na sexta-feira (24/6) que cumpriu seis mandados de busca e apreensão nas cidades de Atalaia do Norte e de Benjamin Constant, no Amazonas, nas investigações sobre as mortes do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.
Segundo o órgão, foram apreendidos "objetos possivelmente relacionados" com o crime.
Três homens já foram presos, mas a polícia afirma ter uma lista de oito suspeitos ao todo.
Na quinta-feira (23/6), um homem que se identificou como Gabriel Pereira Dantas se apresentou à Polícia Civil de São Paulo e disse ter participado do crime.
Ele permanece em liberdade, pois, segundo os investigadores da Polícia Federal, não há, ao menos por ora, indícios da participação dele nos crimes. Segundo a PF, o homem "apresentou versão pouco crível e desconexa com os fatos até o momento apurados".
Um dia antes, a perícia nos restos humanos encontrados no Vale do Javari foram concluídas, e os exames de genética forense confirmaram se tratar de Bruno e Dom.
O resultado corrobora os achados anteriores, feitos a partir de análises de arcada dentária.
Com isso, os investigadores concluíram o trabalho e os corpos de Dom e Bruno foram entregues às famílias na quinta-feira, 18 dias depois do desaparecimento de ambos na Amazônia.
O momento era aguardado pelas famílias desde que o primeiro suspeito no caso confessou os assassinatos.
"Agora podemos levá-los para casa e nos despedir com amor", declarou na ocasião Alessandra Sampaio, mulher de Phillips.
No dia 19, foi encontrada a lancha em que a dupla viajava quando desapareceu. A embarcação estava submersa a 20 metros de profundidade no leito do Rio Itacoaí.
Segundo os investigadores, sua localização foi possível porque um dos suspeitos no caso, Jefferson da Silva Lima, indicou o local em que a lancha tinha sido afundada, com o auxílio de sacos de areia.
Os exames na embarcação podem ajudar os investigadores a compreender a dinâmica dos atos dos envolvidos no assassinato e na ocultação dos cadáveres de Dom e Bruno.
A perícia apontou que ambos foram mortos com armas e munição de caça (repleta de balins de chumbo), sendo que Bruno foi atingido por três disparos (dois no peito e um na cabeça) e Dom, por um no peito.
No dia 15, o superintendente da Polícia Federal, Alexandre Eduardo Fontes, disse que um dos dois homens presos durante as investigações, Amarildo da Costa Oliveira, conhecido como "Pelado", teria confessado que enterrou os corpos de Bruno e Dom em uma área de mata de difícil acesso.
Segundo Fontes, "Pelado" guiou os investigadores até o local onde os corpos teriam sido enterrados. Lá, as equipes de busca encontraram os remanescentes humanos que foram enviados a Brasília para serem periciados.
A segunda pessoa presa é Oseney da Costa de Oliveira, irmão de Amarildo que negou participação no crime.
O terceiro a ser preso foi o pescador Jefferson da Silva Lima, de 31 anos, conhecido na região como "Pelado da Dinha", que se entregou na delegacia de Atalaia do Norte no dia 18.
De acordo com a polícia, as provas e depoimentos apontam que ele participou ativamente do crime. A Justiça determinou sua prisão por 30 dias.
No dia 17, a PF informou por nota, sem dar detalhes, que as investigações apontam que os assassinos da dupla teriam agido sozinhos e que o crime não teria sido ordenado por um mandante e nem estaria ligado a uma facção criminosa.
"As investigações prosseguem e há indicativos da participação de mais pessoas na prática criminosa. As investigações também apontam que os executores agiram sozinhos, não havendo mandante nem organização criminosa por trás do delito. Por fim, esclarece que, com o avanço das diligências, novas prisões poderão ocorrer", disse a PF em nota.
A declaração de que as investigações não teriam apontando que o crime teve mandante foi rebatida pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Em nota, a entidade disse que enviou informações ao Ministério Público Federal (MPF), à PF e à Fundação Nacional do Índio (Funai) apontando que os suspeitos presos faziam parte de um grupo criminoso responsável pelas invasões à Terra Indígena Vale do Javari. A entidade cobrou a continuidade das investigações. Bruno era servidor licenciado da Funai e atuava como consultor da Univaja.
"A nota à imprensa, emitida pela PF hoje, corrobora com aquilo que já destacamos: as autoridades competentes, responsáveis pela proteção territorial e de nossas vidas, têm ignorado nossas denúncias, minimizando os danos, mesmo após os assassinatos de nossos parceiros, Pereira e Phillips", disse um trecho da nota da Univaja.
"O requinte de crueldade utilizado na prática do crime evidencia que Pereira e Phillips estavam no caminho de uma poderosa organização criminosa que tentou à todo custo ocultar seus rastros durante a investigação. Esse contexto evidencia que não se trata apenas de dois executores, mas sim de um grupo organizado que planejou minimamente os detalhes desse crime", diz outro trecho da nota.
Quem são Bruno Pereira e Dom Phillips e o que eles estavam fazendo na Amazônia?
Bruno da Cunha de Araújo Pereira é indigenista e servidor da Funai. Ele estava licenciado do cargo e trabalhando em um projeto das ONGs WWF-Brasil e Univaja para ensinar indígenas a monitorar suas terras com o uso de tecnologias como drones. A terra demarcada no Vale do Javari é constantemente invadida por criminosos.
Bruno era considerado um dos maiores especialistas sobre a região e um dos principais indigenistas do país. Em 2019, ele foi exonerado de um cargo de chefia na Funai, mas seguiu como servidor licenciado.
Dom Phillips colaborou com diversos jornais no exterior, entre eles o britânico The Guardian. Ele realizou diversas viagens para a Amazônia, onde fez reportagens sobre desmatamento e crimes. Ele vivia no Brasil há 15 anos e era casado com uma brasileira.
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Phillips viajou para o extremo oeste da Amazônia acompanhado de Bruno para coletar dados para um livro que estava escrevendo sobre como salvar a floresta. Os dois eram amigos e já haviam viajado juntos à Amazônia em outras ocasiões profissionais.
Dias antes de se encontrar com Dom Phillips fora do Vale do Javari, Bruno manteve reuniões com líderes indígenas dentro da reserva indígena.
O que aconteceu?
Em 5 de junho, Bruno e Dom desapareceram a poucos quilômetros do Vale do Javari, que é a segunda maior reserva indígena do Brasil. Eles viajavam de barco pelos mais de 70 km que ligam o lago do Jaburu ao município de Atalaia do Norte.
Na última vez que foram vistos, eles pararam na comunidade de São Rafael, às 6h, onde tinham uma reunião marcada com o líder pescador Manoel Vitor Sabino da Costa, conhecido como Churrasco.
Dali, eles seguiram seu caminho pelo rio. A dupla deveria ter chegado a Atalaia do Norte duas horas depois, mas desapareceu. Quem soou o alerta foram os indígenas da Univaja. Segundo a associação, Bruno e Dom viajavam em uma lancha em bom estado e com combustível suficiente para a viagem.
A Univaja disse que às 14h enviou uma equipe "formada por indígenas extremamente conhecedores da região". A equipe teria percorrido inclusive os "furos" do rio Itaquaí, mas nenhum vestígio foi encontrado.
Há relatos de que Bruno Pereira era alvo constante de ameaças feitas por pescadores ilegais, garimpeiros e madeireiros. Além disso, a Univaja também relatou ameaças a seus integrantes — tendo registrado boletim de ocorrência na polícia poucas semanas antes do desaparecimento de Bruno.
No dia 12, foram encontrados objetos pessoais de Bruno e Dom em um trecho do rio.
O que se sabe sobre a região do Vale do Javari?
Bruno e Dom estavam perto da reserva indígena do Vale do Javari — mas fora dela — quando desapareceram.
Com área equivalente à de Portugal, o território abriga uma floresta bem preservada. Vivem ali cerca de 6 mil integrantes de sete etnias, além de membros de vários grupos em isolamento voluntário.
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A região é conhecida por intensos conflitos entre diversos grupos criminosos (como quadrilhas de madeireiros e pescadores ilegais) contra indígenas. Alguns estudos sugerem que existe ligação entre essas atividades e o narcotráfico, que está presente na região desde os anos 1970.
Pesquisadores também apontam para o enfraquecimento da Funai nos últimos anos — o que aumentou ainda mais a atividade criminosa no Vale do Javari. Nos últimos anos, houve vários ataques na região atribuídos a pescadores e caçadores ilegais.
Os atos foram interpretados como represálias a tentativas de reprimir a ação dos grupos na terra indígena. Entre 2018 e 2019, uma base da Funai que controla o acesso à Terra Indígena Vale do Javari foi alvejada em oito ocasiões distintas.
Em 2019, o colaborador da Funai Maxciel Pereira dos Santos foi morto a tiros em Tabatinga, a maior cidade da região. Meses antes, ele havia participado de uma operação que apreendeu grande quantidade de pesca e caça ilegal. Não houve prisões nem condenações pelo crime.
Qual foi a resposta das autoridades brasileiras?
Dois dias depois do desaparecimento, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) disse que a viagem de Bruno e Dom era uma "aventura não recomendável".
"Realmente, duas pessoas apenas em um barco, em uma região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça. Tudo pode acontecer. Pode ser um acidente, pode ser que tenham sido executados. Tudo pode acontecer. A gente espera e pede a Deus que sejam encontrados brevemente", disse o presidente.
A fala foi criticada pelos familiares de Bruno e Dom, que acusaram o Estado brasileiro de fracassar na segurança da região.
O governo brasileiro também foi criticado por não agir rapidamente nas buscas. No dia seguinte ao desaparecimento, o Comando Militar da Amazônia, do Exército brasileiro, emitiu nota afirmando que estava "em condições de cumprir missão humanitária de busca", mas que a ação só seria tomada "mediante acionamento por parte do Escalão Superior".
Em discurso na Cúpula das Américas, nos Estados Unidos, Bolsonaro disse que "desde o primeiro dia, quando foi dado o sinal de alerta, a Marinha entrou em campo, e no dia seguinte as Forças Armadas e a Polícia Federal". Bolsonaro afirmou que o Estado brasileiro já gastou mais de meio milhão de reais nas buscas.
Familiares também criticaram a falta de suporte da Funai e declarações feitas pelo seu presidente, Marcelo Xavier. O presidente da Funai disse que Bruno Pereira e Dom Phillips precisavam ter pedido autorização para viajar para a reserva indígena na Amazônia.
"A Funai, de forma nenhuma, emitiu nenhum tipo de autorização para ingresso nessa área indígena", disse Xavier à Voz do Brasil.
No entanto, Bruno e Dom não estavam na área indígena quando sumiram. Documentos revelados pela TV Globo mostram que, semanas antes de desaparecer, Bruno solicitou autorização da Funai para ingressar na reserva do Vale do Javari e teve seu pedido aceito — o que contradiz as declarações do presidente da Funai.
Bruno ingressou na área, onde se reuniu com indígenas e, posteriormente, se encontrou com Dom Phillips fora da reserva.
Qual foi a repercussão internacional do caso?
A repercussão do caso foi global, tendo sido noticiada nos principais veículos de comunicação do mundo. Atos no Brasil e no mundo cobraram uma resolução do caso. Parentes e ativistas se reuniram em frente à embaixada brasileira em Londres. Também houve manifestações em cidades como Rio de Janeiro e Salvador.
Na Cúpula das Américas, evento do qual Bolsonaro participou em Los Angeles em junho, circulou um veículo com um cartaz que perguntava "Onde estão Dom e Bruno?"
A ONG Human Rights Watch pediu maior empenho do governo brasileiro.
"Dom Phillips e Bruno Pereira desapareceram em 5 de junho. Jair Bolsonaro disse que eles estavam em 'uma aventura que não é recomendada'. A aventura deles foi cuidar dos indígenas e da Amazônia durante um governo que não se preocupou com nada disso", disse a entidade no Twitter.
A Anistia Internacional também pediu empenho das autoridades brasileiras, além de apoio internacional do Peru e da Colômbia.
"A cooperação internacional é mais vital do que nunca em situações de crise como esta", disse a Anistia, em nota.
O Escritório de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas expressou "preocupação com a questão mais ampla dos constantes ataques e assédios contra ativistas, ambientalistas e jornalistas no Brasil, enfatizando que as autoridades são responsáveis por protegê-las e garantir que possam exercer seus direitos".
- Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61711783
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