O teste do pezinho é obrigatório na rede pública de saúde há 30 anos, mas ainda precisa de engajamento do poder público para atender mais brasileiros. Essa é a avaliação das famílias que conhecem de perto a realidade de doenças raras, que poderiam ser evitadas ou amenizadas se houvesse um diagnóstico precoce. Os participantes do CB.Fórum ressaltaram a necessidade de o governo ampliar e divulgar a importância do teste do pezinho em recém-nascidos.
O Instituto Jô Clemente é pioneiro no teste do pezinho no Brasil e é referência na Triagem Neonatal. A organização não governamental busca promover a saúde das pessoas com deficiência intelectual, além de promover a inclusão social. Entre outras ações, o instituto oferece assessoria jurídica às famílias acerca dos direitos das pessoas com deficiência intelectual.
Superintendente-geral do instituto, Daniela Mendes foi enfática ao afirmar que o governo tem papel preponderante em disseminar campanhas que visem conscientizar os pais a realizarem o teste.
Ela afirmou, ainda, ser fundamental investir na capacitação dos profissionais da saúde. Segundo ela, mesmo em áreas do país onde o teste do pezinho está estruturado, faltam treinamento e aplicação de protocolos clínicos no teste.
"A gente sabe as diferenças que temos no Brasil como um todo. Algumas áreas já estão mais estruturadas na rede, mas o grande desafio é na capacitação, em estabelecer protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. Várias doenças ainda não têm um protocolo definido, e isso é um problema. A triagem é uma continuidade entre o tratamento e o acompanhamento", comentou.
Mendes defendeu o desenvolvimento do modelo da triagem ampliada juntamente com o Ministério da Saúde. "Precisamos, sim, organizar o modelo juntamente com o Ministério da Saúde para que a triagem seja feita de uma forma igualitária no Brasil, de modo que todos os locais e os centros sejam referência", argumentou.
Para a presidente da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo (SBTEIM), Tânia Bachega, alguns estados no Brasil já estão com a triagem organizada. Mas outros ainda passam por dificuldades em diagnosticar as seis doenças.
"Nós temos estados que estão com a triagem muito organizada, como por exemplo São Paulo. A população merece ter acesso às novas tecnologias de saúde. Existem outras doenças que foram incorporadas no teste, mas temos regiões de menor desenvolvimento econômico que têm dificuldade de diagnosticar apenas as seis doenças. Nós precisamos olhar para esses lugares", ponderou Bachega.
"Não podemos deixar de olhar onde a triagem não vai bem. Nós sugerimos o projeto de lei em etapa porque só fazer o primeiro teste não resolve. Isso demanda uma tecnologia de alta complexidade e os profissionais precisam ser treinados. Vamos precisar treinar os pediatras e os geneticistas, nós temos que treinar os médicos para atenderem os pacientes e atender em regiões carentes."
Sancionada em novembro de 2021, pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), a Lei 14.154 é o resultado da luta de diversos atores em prol da ampliação do teste de triagem biológico, ou teste do pezinho, na linguagem popular. O texto estabelece cinco etapas de implementação de 44 novas doenças que poderão ser identificadas através do exame no Sistema Único de Saúde (SUS), nos primeiros dias de vida.
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Abrangência
Para a superintendente-geral do Instituto Jô Clemente, o plano deve ser aplicado de maneira a abranger todos os estados da federação, e evitar que apenas os grandes centros urbanos incorporem a novidade. A exemplo, ela citou o município de São Paulo, que já iniciou os testes da triagem neonatal biológica com 50 doenças no final de 2020.
"Nós temos que organizar todo o modelo, estruturar, contribuir juntamente com o Ministério da Saúde, justamente para que essa triagem seja feita de uma forma igualitária, no Brasil como um todo, não apenas em alguns centros", disse.
O profissional de saúde desempenha um papel essencial na realização do teste do pezinho e na implementação do Programa Nacional de Triagem Neonatal. Isso porque é ele que tem uma aproximação maior com as mães, acompanhado das gestantes desde o período do pré-natal até o final do período puerperal.
"Além de expandir a triagem, a gente precisa pensar em educar os profissionais de saúde na graduação", insistiu Tânia Bachega.
Reaprendendo a viver
A vida de Suhellen Oliveira deu grandes reviravoltas com a chegada da maternidade. Ela é mãe de dois filhos diagnosticados com a atrofia muscular espinhal (AME), doença degenerativa rara que pode causar danos ao funcionamento do corpo da criança — como atrapalhar a respiração, deglutição e mobilidade.
"É um impacto tão grande de informações, é um 'boom' de sentimentos. A gente acaba tendo que se reinventar como esposa, como mulher. Algumas mães ficam sós, abandonadas pelos esposos, que não aguentam a pressão", contou a participante do CB.Fórum.
Embora Lorenzo, de 9 anos, e Levi, de 2, tenham a mesma doença, o diagnóstico do filho caçula de Suhellen foi feito bem antes, em comparação com o mais velho. Na época em que gerou o primeiro filho, a mãe ainda não conseguia identificar os sinais de que o bebê poderia estar desenvolvendo quadros mais graves de uma doença rara.
"A AME se confundia muito com 'bebê preguiçoso' (ou bebê hipotônico — quando a criança tem dificuldade de enrijecer a musculatura) e antigamente o pessoal falava: 'Não, esse aqui é preguiçoso, é mais devagar', então o Lorenzo começou a perder mesmo o movimento. Ele começou a não conseguir mais levantar os braços."
Com isso, o tratamento de Lorenzo foi o mais trabalhoso. O diagnóstico foi realizado tardiamente, aos seis meses de vida. Já o exame genético, para confirmar a doença, foi feito apenas um ano depois. Suhellen conta que, nos primeiros dois anos do primeiro bebê, cada mês que passava era uma vitória para quem sabia da possibilidade de que o filho pudesse vir a falecer.
"Na época que tive o diagnóstico (do Lorenzo), a gente não tinha perspectiva nenhuma. Era cuidar para que ele tivesse o máximo de vida possível e esperar que, em menos de dois anos, ele viesse a morrer", explicou.
No entanto, o diagnóstico precoce do menino mais novo, ainda durante a gravidez, ajudou a mãe a se preparar para iniciar o tratamento o mais cedo possível. Isso impactou positivamente na vida de Levi e hoje ele já consegue falar e respirar sem a ajuda de aparelhos.
"Foi uma gestação que eu não esperava. A gente teve o diagnóstico precoce e pôde pensar em estratégias junto com a equipe, com os profissionais, do que a gente ia fazer", disse a mãe. "O Levizinho, só de ele comer pela boca, só quem é mãe sabe. Ter essa oportunidade de respirar sozinho, poder conversar, ter voz alta e até (com) as birras a gente se emociona", revelou.
Mesmo com a demora para a implementação da Lei 14.154/2021, Suhellen comemora a ampliação do teste e a possibilidade de que outras 44 doenças — além das seis já aplicadas — possam ser identificadas pela simples triagem neonatal.
"Eu hoje consigo viver momentos simples como mãe, que com o Lorenzo eu não tive oportunidade. Então, o que a gente está fazendo aqui hoje, essas discussões, esse trabalho que muita gente tem feito ao longo dos anos, é um trabalho que vai ser para as futuras gerações", comentou.