O desaparecimento do servidor licenciado da Fundação Nacional do Índio (Funai) Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips chamou atenção para uma situação que vem sendo vivida por servidores da instituição e por indígenas. Considerado o maior especialista em indígenas isolados, Bruno Pereira pediu licença da Funai em janeiro de 2020, logo após ter sido exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato em 2019.
A saída dele foi assinada pelo número dois no Ministério da Justiça, ainda na gestão de Sergio Moro, logo após Bolsonaro assumir a presidência. Na época, a exoneração foi atribuída a pressão de ruralistas. De acordo com a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), a perseguição começou a ocorrer depois que ele atuou em uma operação que destruiu mais de 60 balsas de garimpo ilegal na Terra Indígena Vale do Javari, em 2019.
Em nota, a Funai negou que Bruno estivesse sendo perseguido na instituição e disse que cargos de confiança são de livre nomeação e exoneração.
Além disso, Bruno estava sendo ameaçado por caçadores e garimpeiros, segundo a Univaja. De acordo com um relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de abril, pelo menos 32 líderes indígenas e quatro servidores públicos que trabalham com comunidades indígenas receberam ameaças de morte em 2021. Em 2019, na mesma região, foi assassinado o ex-colaborador da Funai Maxciel Pereira, após participar de uma operação que apreendeu grande quantidade de caça e pesca ilegal no território. De acordo com a Pastoral da Terra, pelo menos 313 pessoas foram assassinadas na Amazônia nos últimos 10 anos.
Relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de 2021 mostrou que os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram nos últimos anos. Foram 263 casos do tipo registrados em 2020 – um aumento em relação a 2019, quando foram contabilizados 256 casos, e um acréscimo de 141% em relação a 2018, quando haviam sido identificados 109 casos. Este foi o quinto aumento consecutivo.
De acordo com o porta-voz de Amazônia do Greenpeace Brasil, Danicley de Aguiar, o desaparecimento de Bruno e Dom são a ponta do iceberg de um problema muito maior na Amazônia. "É um processo de desmonte do Estado brasileiro na Amazônia, que se aprofunda na gestão Bolsonaro. É um conjunto de ações e omissões”, relata. De acordo com ele, a violência tem se aprofundado na região e o enfraquecimento de instituições como a Funai e o Ibama tem contribuído para isso. “Não existe lugar seguro na Amazônia. A Amazônia é um espaço de disputa. O crime organizado está disputando a região. Os inimigos não são os povos indígenas, as organizações ambientais, o governo britânico, é o crime organizado que está se enraizando na região, especialmente o narcotráfico. Estamos perdendo essa luta e o Estado faz de conta que não vê”, afirma.
Segundo Danicley, a grande questão é que economia da região tem sido baseada na exploração contínua dos recursos sem respeito às populações que vivem na floresta e ao meio ambiente. "O interesse é de abrir a Amazônia para o capital privado, como se a Amazônia fosse um grande deserto humano. São 30 milhões de pessoas. E há uma ausência de política pública que aprofunda o estado de violência permanente na região", destaca. "Temos um modelo econômico baseado na violação de direitos humanos baseado na economia da destruição”, completa.
Para mudar isso, ele explica que é necessário que o Estado comece a investir em políticas públicas para a região e em tecnologia. "Uma economia capaz de conviver com a floresta não se dá por mágica, mas por investimento. Não tem como dar esse salto sem investimento público", diz.
O alerta sobre o narcotráfico na região também foi dado, nessa segunda, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Segundo ele, o desaparecimento de Bruno e Dom é “advertência” para o país e para que situações como essa não se repitam. Ele alertou que a Amazônia se tornou um lugar aberto para o crime organizado.
Mudanças na Funai
Na Funai, pelo menos três dirigentes deixaram seus postos nos últimos dias. Na segunda, servidores da instituição anunciaram greve como resposta à fala do presidente da autarquia, Marcelo Augusto Xavier da Silva, de que Bruno e Dom não avisaram as autoridades sobre a ida à região. Um dos pedidos dos servidores é por mais segurança para a região do Vale do Javari.
Um dossiê divulgado nesta segunda (13/6) pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em parceria com o Indigenistas Associados (INA) aponta que a prática de perseguição aos funcionários concursados e lideranças indígenas tem sido comum dentro da autarquia. Segundo o levantamento, desde 2019, a Funai aumentou o número de processos administrativos disciplinares (PAD) contra servidores. Entre as práticas de assédio moral, é citado que servidores tiveram de substituir palavras consideradas “subversivas” em projetos, evitando mencionar “assembleia”, “parceiros”, “organizações não governamentais”, “movimento indígena”, omitindo apoio dessas entidades.
Outra questão é que, atualmente, das 39 Coordenações Regionais da Funai, apenas duas têm como chefes titulares servidores do órgão. Outras 10 estão sendo comandadas por servidores na condição de substituto.
No Balanço Orçamentário de 2021, feito pela Inesc, é destacado que o recurso destinado à Funai não é suficiente para atender as demandas. Cerca de 70% do orçamento da instituição é destinado a pagamento de pessoal e só 30% para as ações finalísticas. “O recurso é pouco para dar conta de uma estrutura enxuta de funcionamento e ainda realizar as políticas finalísticas”, destaca o relatório. De acordo com o dossiê, divulgado nesta terça-feira (13/6), a Funai ainda sofre com falta de pessoal. Em 2020, a autarquia funcionava com a atuação de 2.071 profissionais, sendo 1.717 funcionários efetivos. Ao todo, 2.300 cargos estavam vagos.
Além disso, o Balanço Orçamentário ainda mostra que parte dos recursos foi usada para pagar indenizações por “benfeitorias de boa-fé erguidas em Terras Indígenas de diferentes estados”. “Os recursos executados na ação orçamentária que deveriam garantir a proteção territorial e fazer avançar a demarcação de terras indígenas têm sido utilizados para beneficiar os invasores dessas terras”, destaca o relatório.
De acordo com a Funai, foram investidos quase R$ 10 milhões em ações nos últimos três anos, no Vale do Javari, o que representa uma alta de 104% na comparação com o período anterior, quando foram gastos R$ 4,8 milhões. Segundo a entidade, entre as medidas, estão ações de fiscalização e coibição de crimes como extração ilegal de madeira, atividade de garimpo e caça e pesca predatórias.
“Além disso, o investimento da Funai em ações de proteção a indígenas isolados e de recente contato chegou a R$ 51,4 milhões entre 2019 e 2021 em diferentes regiões do país, superando em 335% o total investido entre os anos de 2016 e 2018, cujo aporte foi de R$ 11,8 milhões. Os recursos foram empregados principalmente em ações de fiscalização territorial e combate à covid-19 em áreas habitadas por essas populações”, diz a nota.