Passados quatro anos e oito meses da chamada tragédia de Janaúba, em que 10 crianças e quatro adultos morreram no incêndio criminoso da Creche Gente Inocente, na cidade do Norte de Minas, as famílias das vítimas sofrem com a saudade, com as sequelas das queimaduras entre os que sobreviveram e, agora, com a dor do descaso e do desamparo por parte do poder público. O período transcorrido desde o ataque de 5 de outubro de 2017 já foi suficiente para troca de prefeitos na administração municipal, mas não ainda para que fosse definida uma reparação digna e definitiva aos atingidos. E, nos últimos meses, além das cicatrizes deixadas para sempre, eles também passaram a enfrentar a dificuldade para comprar medicamentos usados no tratamento dos sobreviventes e até para o próprio sustento, pois deixaram de receber a quantia mensal que era paga pela prefeitura a título de antecipação de indenização.
“Hoje, as famílias não sofrem mais tanto pelo fogo. Há sequelas, sim. Mas, a pior dor é a da frieza com a qual estão nos tratando”, lamenta o presidente da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Creche Gente Inocente de Janaúba (AVTJana), Luiz Carlos Batista, o “Carlinhos”, ao reclamar da falta de apoio do poder público. “É um descaso, um abandono”, completa Batista, que é viúvo da professora Heley de Abreu Silva Batista, morta como heroína depois de tentar salvar as crianças em meio às chamas. Ela também lutou com o vigia Damião para tentar impedir a tragédia. Hoje, dá nome centro de educação infantil que substituiu a antiga creche.
Quase a totalidade das vítimas na unidade, cujo imóvel antigo foi demolido e deu lugar a um novo prédio, é formada por famílias de baixa renda, sem recursos para custear procedimentos médicos e comprar medicamentos para tratar sequelas das queimaduras ou reflexos psicológicos do ataque.
Após ações ajuizadas pela Defensoria Pública Estadual e por advogados das vítimas em busca de indenizações, foi firmado com o município um termo de ajustamento de conduta com intermediação do Ministério Público de Minas Gerais. Nele ficou acordado que a Prefeitura de Janaúba pagaria às 83 famílias quantias que variavam entre R$ 500 e R$ 1 mil mensais por atingido, a título de antecipação, até o desfecho das pendências judiciais.
Mas, em dezembro de 2021, alegando não dispor de previsão orçamentária “específica”, a Prefeitura de Janaúba suspendeu o pagamento dos valores. “Quando ocorreu a fatalidade, não se criou uma fonte de recurso para essa indenização”, justifica o Executivo Municipal, que em abril encaminhou projeto de lei à Câmara com uma proposta de “indenização definitiva” às vítimas da tragédia. A oferta é recusada pelas famílias e por seus advogados, que a consideram “irrisória”, sendo rejeitada também pela Defensoria Pública, que apresentou contraproposta ainda não respondida. O projeto de lei ainda não foi apreciado pela Câmara Municipal.
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TRATAMENTO: Luiz Carlos Batista, da AVTJana, reclama que, além de os valores das indenizações propostas serem “irrisórios”, a prefeitura não oferece garantia de que vá manter a assistência a crianças e adultos que terão de manter tratamento por longo prazo diante das queimaduras graves que sofreram no incêndio criminoso.
Segundo ele, até então essas vítimas são atendidas com fornecimento de cremes hidratantes e outros produtos adquiridos com dinheiro de doações recebidas pela associação dos familiares das vítimas, que também paga consultas com médicos especializados. Mas as verbas estão perto do fim. “Estamos preocupados porque, até julho, acaba todo o nosso dinheiro.”
O viúvo da professora Heley de Abreu argumenta que a Prefeitura de Janaúba tampouco disponibiliza consultas especializadas para as vítimas da tragédia. “Muitos tratamentos foram interrompidos”, relata, reclamando do que classifica como “falta de sensibilidade” do atual prefeito de Janaúba, José Aparecido Mendes Santos (PSD), com as vítimas do incêndio criminoso e seus familiares, ocorrido na gestão anterior. “São 83 famílias de bairros pobres. O prefeito está agindo com muita frieza, com muita injustiça”, diz.
Criticado, valor seria pago em prestações
O presidente da associação das vítimas afirma que, no Termo de Ajustamento de Conduta firmado pela Prefeitura de Janaúba com o MP, os atingidos pela tragédia foram divididos em três grupos: um de famílias em que houve mortes; outro de pessoas com queimaduras e sequelas graves; e um terceiro grupo de vítimas com ferimentos leves. Por meio do TAC, desde a época do incêndio criminoso, em outubro de 2017, até dezembro de 2021, foram pagos mensalmente R$ 1 mil aos atingidos dos dois primeiros grupos e R$ 500 às demais vítimas, explica Luiz Carlos Batista.
Segundo ele, a prefeitura, ao enviar o projeto de lei sobre indenizações definitivas à Câmara, propôs como “indenização definitiva” R$ 110 mil para famílias em que houve mortes; R$ 77 mil para casos de vítimas graves; e R$ 55 mil para as demais. Com os descontos dos valores pagos antecipadamente por intermédio do TAC, segundo ele, a maior indenização cairia para R$ 60 mil, enquanto a compensação intermediária se reduziria a R$ 27 mil e o grupo de vítimas leves teria direito a R$ 30 mil. Ainda pelo teor da proposta, o pagamento seria feito em oito parcelas.
CONTRAPROPOSTA: O defensor público Gustavo Dayrell, que atua na assistência jurídica às famílias de vítimas da tragédia na creche em Janaúba, concorda com a queixa sobre os baixos valores das indenizações, e apresentou à Câmara Municipal uma contraproposta, com compensações que seriam pagas em duas parcelas: R$ 150 mil para casos de mortes; R$ 120 mil por vítimas com ferimentos e sequelas graves; e R$ 75 mil para as demais. Luiz Carlos Batista afirma que já tentou tratar da questão com os vereadores de Janaúba em pelo menos quatro reuniões da Câmara Municipal, mas sem sucesso.
O advogado Rogério Aguiar, que defende cerca de 30 professoras e auxiliares vítimas do incêndio na Creche Gente Inocente, afirma que os valores das indenizações propostas pelo município são insuficientes para o pagamento das despesas de suas clientes. “Além do valor irrisório, ainda querem parcelar o pagamento”, critica. Outro defensor das vítimas, o advogado Everaldo Ramos, também reclama da falta de apoio às famílias. “O prefeito quer oferecer migalhas para as famílias vítimas de uma tragédia que chocou o país, em um momento em que ele propaga pelos quatro cantos da cidade um pacote de obras de R$ 100 milhões. Isso causa profunda indignação.”
O que diz a prefeitura
Procurada pelo Estado de Minas para responder às críticas das famílias e da Defensoria, a Prefeitura de Janaúba se manifestou por meio de nota, na qual afirma que vem cumprindo o Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o MP em dezembro de 2017 e que “iniciou o pagamento antecipado da indenização no princípio de 2018, até que fosse definida a indenização”.
A administração argumenta que, embora no orçamento para 2021 não houvesse recurso específico para a compensação, “a atual gestão, no ano passado, transferiu mais de R$ 700 mil da Secretaria de Obras para pagar a antecipação indenizatória de 2021”. Ressalta ainda que desde 2017, portanto na gestão anterior, quando ocorreu a tragédia, “não se criou uma fonte de recurso para essa indenização”.
Sobre as críticas quanto ao valor e a suspensão dos pagamentos, o município se limita a informar que a proposta de indenização definitiva enviada à Câmara leva em conta critérios da Lei de Responsabilidade Fiscal e que o pagamento depende de autorização dos vereadores.
‘Essa proposta de acordo é desumana’
A desempregada Fernanda Ferreira da Silva, de 31 anos, retrata o drama e a angústia das famílias de baixa renda vítimas do incêndio. Ela é mãe de Raíssa da Silva Caetano de Jesus, de 9, que em 2017 sofreu queimaduras de segundo grau em grande parte do corpo durante o ataque. A menina precisou ficar internada por três meses no Hospital João XXIII, em Belo Horizonte.
Mãe solteira, Fernanda conta que depois da tragédia, não teve mais como trabalhar, passando a cuidar de Raíssa, zelando também por um outro pequeno, Isaac, de 11 meses. A desempregada relata que o valor de R$ 1 mil que recebia mensalmente a título de antecipação da indenização da prefeitura, além de contribuir no custeio do tratamento da filha, ajudava no pagamento da alimentação, das contas de água e luz e do aluguel, de R$ 500.
Após a suspensão do pagamento, Fernanda conta que passou a enfrentar muitas privações, até falta de alimentos. “Só Deus para ter misericórdia da gente. Às vezes, fico sem ter o que cozinhar”, reclama a moradora de Janaúba. Ela disse que a situação só não é pior porque recebe a ajuda da avó materna da filha, que recebe um benefício previdenciário.
Outro atingido pela tragédia é Flávio Oliveira Silva, de 34, pai de Flávia Nayara Oliveira Silva, de 8 anos, que teve 80% do corpo queimado durante o ataque ao centro de ensino infantil. A garota, então com 4 anos, foi transportada em estado grave para o Hospital João XXIII, em Belo Horizonte, onde ficou por dois meses e foi submetida a cirurgias plásticas.
Flávio afirma que trabalhava como montador de equipamentos de irrigação em plantações de banana. Com a tragédia, teve que interromper totalmente a atividade para cuidar da filha. A mulher, Élica Nayara Soares Dias, de 29, deixou o trabalho de cuidadora de idosos pelo mesmo motivo. O casal tem um outro filho, Emanuel, de 2 anos.
Hoje, Flávio conta que os “bicos” como servente de pedreiro não dão conta de evitar o aperto, principalmente depois que a prefeitura suspendeu os pagamentos mensais às famílias. Por causa da gravidade das queimaduras que sofreu, Flávia Nayara precisa usar cremes hidratantes e protetores de pele que têm custo elevado. Até agora, os produtos têm sido garantidos pela Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Creche Gente Inocente. “O dinheiro da associação está acabando, e não sabemos como a gente vai fazer”, preocupa-se o servente de pedreiro, ao lembrar que a filha ainda terá que ser submetida a novas cirurgias plásticas, por causa das marcas deixadas pelas queimaduras. Flávio também reclama do valor da indenização proposta pela Prefeitura de Janaúba. “Precisamos de um valor para o tratamento da nossa filha e que ajude a gente a sobreviver”, solicita.
TRAUMA: Ivani Lopes Nunes Santana, que trabalhava como auxiliar em uma das salas da antiga Creche Gente Inocente, diz que o trauma diante do horror do incêndio criminoso a obrigou a se afastar do trabalho. Ivani afirma ainda que passa por sérias dificuldades, pois, sem conseguir atendimento público, precisa custear as despesas com psicólogo. Quanto ao valor da indenização oferecido às vítimas pelo Executivo Municipal, classifica como “uma proposta de acordo desumana”.