Há quase um mês, uma menina de 13 anos foi retirada da própria casa e da rotina para viver em um abrigo municipal, em Ribeirão das Neves, Minas Gerais, onde não conhece ninguém. Depois de alguns dias que ficou sem nenhuma comunicação com a filha, nessa quarta-feira (16/06), a diarista Liliane dos Santos, de 38 anos, conseguiu falar com ela pelo telefone.
"Perguntei 'como você está aí, minha filha?' e ela respondeu 'estou bem, mamãe. Só quero ir embora para minha casa'. São quase 30 dias que a menina está afastada da mãe e sem contato com familiares e amigos. Enquanto isso, na casa de Liliane, a cama está arrumada à espera da menina com edredom laranja, um urso rosa e os travesseiros com fronhas floridas.
A menina foi afastada da mãe por decisão da 2ª Vara da Infância e Juventude de Ribeirão das Neves, a pedido do Ministério Público de Minas Gerais. No entanto, a defesa da mãe aponta que se trata de um caso de racismo religioso, por Liliane ter levado a filha à umbanda. A defesa alega a fragilidade da denúncia apresentada pelo Ministério Público, baseada em relatos da direção da escola e do Conselho Tutelar sem que haja provas documentais de maus-tratos, o que poderia justificar a perda da guarda.
O caso começou quando a direção da Escola Estadual João Lopes Gontijo acionou o Conselho Tutelar de Justinópolis alegando que a menina tinha crises de convulsão e apresentava marcas no braço. Liliane afirma que ""tiraram a filha do nada" sem que ela pudesse sequer se defender das acusações que fizeram contra ela.
Longe de casa há quase um mês, a menina não pode fazer pequenas ações de sua rotina, como comer empada e tomar refrigerante. "Semana passada, quando fui lá, meu coração cortou de dó, ela pediu para eu levar empadinha e Coca-Cola para ela." Liliane pretende visitá-la na terça-feira e quer atender ao pedido da menina que não pode mais brincar na rua ou jogar bola na quadra do bairro. "Todo mundo gosta de brincar com ela", conta a mãe.
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Problemas de saúde
A direção da escola enviou documento, em 18 de maio de 2022, ao Conselho Tutelar de Justinópolis em que alega que a menina apresentava problemas de saúde.
"A adolescente é nossa aluna desde 2021, e vem apresentando convulsões constantes na escola, e, hoje notamos que a mesma tem cortes no braço esquerdo e duas cruzes, uma no braço direito e outra no braço esquerdo", traz o documento.
A mãe, no entanto, afirma que a menina passou mal uma única vez, quando teve um pequeno desmaio.
Na ocasião, a diretora acionou o Samu e a menina foi levada para a Unidade de Pronto-atendimento (UPA).
"Me chamaram na escola e quando cheguei, o Samu já estava e a levou para UPA Justinópolis. O médico falou que ela não tinha nada e voltamos para casa. Mediram a pressão dela. O médico disse 'pode levar ela para casa, mãe. Ela não tem nada. E eu a trouxe embora."
Depois desse episódio, Liliane conta que foi chamada na escola, ocasião em que explicou que a filha estava fazendo um tratamento espiritual.
"A diretora disse que ela tinha que esconder as guias, porque elas eram evangélicas e não precisava ficar sabendo daquilo que era pessoal da minha filha. Depois desse dia, começaram a implicar comigo".
'Eles não podem tirar o filho de uma mãe assim'
Liliane dos Santos defende que a filha foi afastada dela por racismo religioso, pelo fato de ela ser praticante da umbanda. "Eles não podem tirar um filho de uma mãe assim não. Esse povo não sabe a dor que estou sentindo. Foi racismo", diz.
A principal queixa de Liliane é não ter tido a oportunidade de se defender. Segundo ela, no dia em que foi chamada ao Conselho Tutelar de Justinópolis não pode argumentar.
"O jeito de elas me tratarem nem um cachorro é tratado desse jeito que fizeram comigo no dia que tomaram minha filha".
A defesa de Liliane está sendo feita por Isabela Dario, que também é presidente da Comissão de Liberdade Religiosa da OAB-MG. O outro advogado é o coordenador-executivo do Instituto de Defesa das Religiões Afro-brasileiras (Idafro), Hédio Silva Júnior, juntamente ao advogado Anivaldo dos Anjos.
A defesa argumenta ainda que o vínculo familiar é considerado pelo direito constitucional como "intocável" e que só pode ser desfeito em situação de vulnerabilidade, violência e abuso. Hédio afirma que é necessário apresentar provas de que tenham ocorrido maus-tratos, como um laudo pericial, o que não foi incluído nos autos do processo.
De acordo com os defensores de Liliane, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código Civil e a Constituição Federal asseguram aos pais o direito de definir a educação religiosa dos filhos menores.
A Secretaria de Estado de Educação informou, por meio de nota, que "a supervisão da unidade de ensino seguiu a legislação vigente em defesa da criança e do adolescente (artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente) e comunicou o fato ao Conselho Tutelar."
Já o Conselho Tutelar de Justinópolis informou, também em nota, que houve "desvirtuamento da realidade fática". O Ministério Público disse que a menina foi levada em situação emergencial a um abrigo institucional por não haver indicação de outros familiares que pudessem assumir a guarda.
A reportagem entrou em contato novamente com SEE e com o Conselho Tutelar de Justinópolis, nesta quinta (16/06), e aguarda um retorno.
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