Sociedade

Apenas 1% das pessoas com deficiência estão empregadas no mercado formal

Projeto de lei que altera medidas de inclusão pode prejudicar ainda mais esse grupo de trabalhadores. No Supremo, empresas querem acabar com a obrigatoriedade de contratar esses profissionais

Joice Heliszkewski, 43 anos, tem deficiência intelectual leve. Em razão da Lei de Cotas (8.213/91)* e do seu desempenho como porta-voz dos direitos das pessoas com deficiência, ela está empregada. Há 15 anos, Joice atua como mensageira na TV Cultura. Dentre os mais de 11,9 milhões de desempregados no país — número da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) referente ao primeiro trimestre de 2022, há uma parcela específica, as pessoas com deficiência, que não estão sendo devidamente posicionadas no mercado de trabalho. Elas têm o direito garantido pela Lei de Cotas — 768 mil vagas são destinadas a esse público no país —, mas o que a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) mostrou é que apenas 1% desse público está ocupando os postos de trabalho.

Em 2019, o governo de Jair Bolsonaro (PL) enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei (6159/19) que altera as políticas de habilitação, reabilitação profissional e as medidas de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Esse PL faz parte do programa Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, um pacote de medidas que o governo tentou implementar para reduzir o desemprego no país. A lei, porém, quer reformular a base de cálculo para a contratação de pessoas com deficiência.

O texto sugere duas formas para a inclusão desse perfil no mercado de trabalho: a contribuição para conta única da União, cujos recursos serão destinados a ações de habilitação e reabilitação, ou a associação entre diferentes empresas que, em conjunto, atendam à obrigação de contratação na forma da lei. Para pessoas com deficiência severa, a vaga contará em dobro para as empresas.

A justificativa para as alterações, de acordo com o ministro da economia, Paulo Guedes, é de que não há, hoje, o preenchimento completo das vagas asseguradas por lei, e que apenas a metade delas está ocupada. "A definição de cotas de forma ampla alcançando igualmente todos os setores, todas as localidades e todas as ocupações representa uma obrigação que, em muitos casos, não pode ser cumprida", declarou o ministro à época, na exposição de motivos do projeto.

Victor Martinez, supervisor do Serviço de Inclusão Profissional e Longevidade do Instituto do IJC, explica que essa ação é um retrocesso, pois deixa à mercê o cumprimento das contratações e não foca no que realmente deve ser mudado na governança ambiental, social e corporativa (ESG) das empresas. "Quando você muda essa base de cálculo, dando o poder para que alguns sindicatos ou outras esferas definam as contratações, de certa forma, são eles que definirão quem irá ser contabilizado ou não na cota, excluindo algumas funcionalidades. Hoje, no Brasil, por conta do número de contratações que está entre 450 a 500 mil pessoas, são preenchidas metade das vagas que deveriam ser ocupadas pela lei de cotas. Ou seja, nós temos, na verdade, 900 mil postos de trabalho a serem preenchidos por pessoas com deficiência e só conseguimos preencher metade. De fato, com a mudança, o número mínimo esperado e trazido pela lei de cotas será reduzido."

Joice garantiu seu emprego com uma importante aliada, a Chaverim. O espaço, criado em 1995, para a promoção e sociabilização de pessoas com deficiência intelectual e psicossocial, desenvolve atividades e faz conexão com empresas para que seus membros ingressem no mercado de trabalho. Em 2007, depois da capacitação, ela foi chamada no processo seletivo realizado pelo Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) para compor o quadro de funcionários da Tevê. Nas primeiras semanas, enfrentou dificuldades em decorar os setores da empresa, mas, com o desenrolar do trabalho, adaptou-se e desempenha o serviço diariamente.

"Chaverim me abriu muitas portas, me conectou com o primeiro emprego com registro. Faço correio, entrego as correspondências nos departamentos, por exemplo. Acho muito importante ter nosso dinheiro, independência e poder administrar as finanças sozinha. O que eu gostaria mesmo é que tivessem mais pessoas iguais a mim trabalhando", diz.

Melhores oportunidades

Especialistas indicam que ainda existe uma alta preocupação com a vaga de emprego, mas a qualidade do trabalho para pessoas com deficiência também é esquecida. Para o defensor público e especialista em inclusão, direitos humanos e economia sustentável, André Naves, o Congresso não deveria se preocupar em alterações na lei, mas na criação de políticas públicas para melhorar a empregabilidade. "Leis até existem, a lei de inclusão, por exemplo, é muito boa, mas além do papel nós precisamos de práticas inclusivas, da abertura de vagas que inclua realmente essas pessoas e busquem a capacitação e qualificação. Não que as aprisionem em empregos que são importantes, mas são de baixa qualidade. Precisam de políticas públicas coordenadas, planejadas com empresas e sociedade civil que mirem o desenvolvimento dessas pessoas", explicou.

Para Martinez, a situação vivenciada no mercado de trabalho é fruto da relação de desconhecimento das empresas — e falta de iniciativa — em entender as pessoas com deficiência como força produtiva. "Elas podem ocupar vagas nas empresas que sejam operacionais, técnicas, mas também que necessitem de intelectualidade mais elevada. Basta que seja feito um processo onde sejam considerados os apoios que essas pessoas precisam para se desenvolver dentro dessas empresas", pontuou.

A assistente social Ester Rosenberg Tarandach, atuante na causa há mais de 50 anos, idealizadora e presidente do conselho da Chaverim, explicou que o tema precisa ser tratado com mais sensibilidade. "Estamos vivendo um momento de transformação social e acho que a pandemia nos ensinou que podemos trabalhar de outras formas. É preciso sensibilizar o universo do trabalho para que se mude a postura das pessoas em ver a pessoa com deficiência nas suas potencialidades e singularidades."

 

STF julga brecha

No Supremo Tribunal Federal (STF) há uma movimentação de empresários que questionam a Lei de Cotas. Baseados na reforma trabalhista, sancionada em 2017, querem que o acordo entre patrões e funcionários prevaleça frente às leis que regulam o trabalho, com exceção dos direitos previstos na Constituição. As cotas não são direitos constitucionais, por isso a brecha.

Os empresários defendem a possibilidade de reduzir ou acabar com cotas para postos de trabalho de jovens aprendizes e pessoas com deficiência (PcD). O STF iria avaliar o processo em abril deste ano, mas adiou o julgamento para agosto.

Por outro lado, em nota enviada aos ministros, a Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In) lembra que, mesmo com avanços, as pessoas com deficiência no mercado de trabalho ainda enfrentam a exclusão, o que promove a vulnerabilidade. A entidade reúne 18 organizações da sociedade civil.

"Tal possibilidade, caso autorizada, acabaria por suprimir oportunidades de trabalho para um público que historicamente vem sofrendo sistemática exclusão laboral, razão pela qual ao longo de décadas vem pleiteando políticas afirmativas para a garantia desse direito fundamental", diz um trecho. "As leis e decretos que estabelecem essas cotas não preveem tais exceções, já que seu escopo é garantir não o número ideal, mas o mínimo de oportunidades em um cenário de indubitável discriminação", continua.

Também foi destacada a inconstitucionalidade do ato, pois um artigo da Consolidação das Leis do Trabalho define "como ilícita a supressão ou redução, por meio de convenção coletiva ou acordos coletivos de trabalho, dos direitos para pessoas com deficiência".

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