A comerciária Dandara Aguiar, 30, amamenta o pequeno Heitor Eduardo, de 10 dias, segurando seu corpo com cuidado.
Ela descansa em casa enquanto a incisão da cesariana sara ao lado da cicatriz do transplante de fígado, a marca que representa a jornada de uma década até conseguir realizar o sonho de ser mãe.
Desde a adolescência, Dandara ansiava por ter sua própria família. Aos 17 anos, no entanto, ela descobriu que seu próprio sistema imunológico atacava seu corpo, criando doenças autoimunes.
Na época, as plaquetas, células responsáveis pela coagulação sanguínea, começaram a cair drasticamente enquanto o baço, órgão que ajuda a filtrar o sangue, aumentava de tamanho.
Depois de muitas idas ao médico, exames e internações, os médicos não chegaram a um diagnóstico — depois de alguns anos ela descobriria que se tratava da doença autoimune 'púrpura' — e determinaram retirada do baço e da vesícula, que armazena a bile, líquido produzido pelo fígado que atua na digestão de gorduras no intestino.
A comerciária viveu sem outros sintomas até os 20, época em que ela já namorava havia alguns anos e a vontade de vivenciar uma gestação crescia. Foi quando seus olhos e pele começaram a ganhar um tom amarelado.
É um sinal clássico de que algo não vai bem com o fígado, já que uma das funções do órgão é ajudar que o excesso de bilirrubina no sangue, uma substância de cor amarela presente na bile, seja eliminado na urina.
Moradora de Fortaleza, no Ceará, Dandara procurou ajuda no Hospital São José, que conta com um ambulatório de hepatite. Lá, ela conheceu a médica Elodie Bonfim Hyppolito, que a diagnosticou com uma doença chamada cirrose hepática autoimune.
"É uma doença para a qual a ciência ainda não tem uma explicação exata. O próprio organismo rejeita o órgão, como se fosse um fígado de outra pessoa", explica Hyppolito, que é médica hepatologista.
Apesar do alívio de conseguir saber o que se passava de errado com ela, o diagnóstico também assustou Dandara. "O nome cirrose me estranhou muito, por associar com o excesso de consumo de bebida alcoólica [o que geralmente causa cirrose]. Mas aí me inteirei no mundo das doenças autoimunes. A médica explicou que já era um quadro crônico, que eu não conseguiria curar, mas que dava para tratar", conta.
Dandara foi encaminhada para tratar a doença no Hospital Universitário Walter Cantídio, do Complexo Hospitalar da UFC/Ebserh, onde passou anos tentando estabilizar a agressão do organismo ao próprio fígado enquanto sofria uma piora importante da qualidade de vida.
'Quando vou poder ser mãe?'
"Cheguei a tomar 14 remédios por dia e tive muitas intercorrências, especialmente porque minha imunidade não era forte. Eu tinha retenção de líquido e meu corpo inchava, apareceram feridas na cabeça, fungos, infecções, meningite, varises no esôfago e até episódios de encefalopatia [quadro hepático que leva à confusão mental]", lembra a comerciária.
Com o tempo a doença progredia e os remédios já não eram suficientes para estabilizar os sintomas. Dandara entrou para a fila de transplante de fígado, mas seu MELD (em inglês, Model for End-stage Liver Disease), um índice que determina a gravidade do caso com base em exames, era baixo em comparação a de outros pacientes, que passavam por um risco de morte mais iminente.
"Enquanto isso ela perguntava em quase todas as consultas, 'Doutora, quando vou poder ser mãe?' Eu brincava que ela deveria adotar um cachorro, e ela até criou dois, mas não desistiu da ideia de gestar", diz Hyppolito.
Depois de dois anos na fila do transplante de fígado, Dandara teve um quadro grave de trombose nos vasos do fígado. "Ela quase perdeu completamente a oportunidade de um transplante, porque para poder inserir o novo órgão, é preciso que os vasos estejam saudáveis para realizar uma emenda", aponta a médica.
O empenho da equipe médica e da paciente deu certo para reverter a trombose. Passados mais dois anos, em dezembro de 2019, a comerciária foi transplantada no HUWC.
"E na consulta seguinte, como eu já esperava, ela me perguntou sobre a possibilidade de engravidar. A gente sabia que era difícil, até mesmo por conta da alta carga medicamentosa para evitar a rejeição do fígado transplantado, mas não impossível", conta a hepatologista.
Dandara engravidou um ano após a cirurgia, sem precisar de qualquer tipo de tratamento para fertilidade. "Comprei um sapatinho e esperei meu marido chegar do trabalho para entregar a ele, que esteve comigo em tantas noites nos mais diferentes hospitais enquanto eu passava por dificuldades. Foi só alegria."
A facilidade com a qual toda a gestação ocorreu surpreendeu toda a equipe - e até a própria Dandara, que agora comemora seu primeiro Dia das Mães como vinha sonhando há tanto tempo.
"Parece que tudo o que eu sofri nos últimos anos foi para chegar à minha gravidez na maior tranquilidade possível. Não tive nenhum problema", conta ela, que ajustou remédios para tornar o processo seguro e foi liberada pela equipe de saúde para amamentar normalmente.
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