"A ideia da força e do poder masculino ainda rege muito nossa sociedade, essa coisa de o homem achar que é dono do corpo das meninas, achar que aquilo é algo que ele pode comprar. Some-se a isso a misoginia e a cultura do estupro. Enquanto a gente não enfrentar esses estigmas sociais e não der condições dignas de vida para as famílias, isso vai continuar acontecendo" Renata Coimbra, diretora e doutora em psicologia
Em 2014, organizando seus pertences para mudar de endereço, Renata Coimbra encontrou a caixa onde estavam guardadas, desde o final da década de 1990, fitas cassete com depoimentos que ela, na condição de supervisora de um grupo de assistentes sociais da Prefeitura de Presidente Prudente (SP), havia colhido de meninas usuárias de drogas e vítimas de exploração sexual, atendidas por um projeto social. Esse evento fortuito é o embrião do documentário “Se eu contar, você escuta?”, que entra em cartaz em Belo Horizonte nesta quinta-feira (19/5).
Primeiro trabalho audiovisual de Renata, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Presidente Prudente e doutora em psicologia, o filme mostra aquelas meninas já adultas, vinte anos depois, relatando o abuso e a exploração sexual que sofreram durante a infância e adolescência.
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DOIS TEMPOS
No primeiro momento do longa, trechos de áudios das entrevistas realizadas em 1999 com oito meninas são apresentados ao espectador. No segundo momento do documentário, sete mulheres – uma das oito garotas morreu em 2011, aos 27 anos – narram para a câmera suas experiências de forma direta e comovente.
Renata estava concluindo especialização em cinema documentário pela Fundação Getúlio Vargas quando encontrou as fitas.
“Estava muito envolvida com a questão do cinema e surgiu o desejo de saber onde essas meninas estavam, o que tinha acontecido com elas e como tinham feito suas jornadas, já pensando num registro documental dessas histórias”, revela.
Depois de passar alguns meses circulando por centros de referência de assistência social de Presidente Prudente e cidades vizinhas tentando levantar informações, Renata encontrou Célia Freire, que integrava o grupo que ela coordenava quando fez as entrevistas com as meninas. Juntas, as duas conseguiram rastrear as famílias das garotas e chegar às mulheres que elas se tornaram.
Algumas ainda moravam em Presidente Prudente, outra estava em Suzano, na Grande São Paulo, e as demais em cidades próximas. “Nós as encontramos entre 2015 e 2016 e passamos a acompanhá-las”, conta a diretora. “Elas se lembravam de mim e especialmente da Célia, profissional muito engajada que desenvolveu uma relação forte com aquelas meninas”, acrescenta.
Com a confiança mútua estabelecida, Renata disse para as sete – Sílvia, Roberta, Edineia, Carla, Cristiane, Maria e Gesiele – que tinha em mente fazer um documentário sobre a história delas. Perguntou se concordavam em dar depoimentos sobre os traumas enfrentados na infância e adolescência.
“Argumentei que (o filme) seria importante para ajudar outras meninas e adolescentes. Tendo esse exemplo, elas poderiam também revelar seus casos de abuso e exploração. Seria importante para visibilizarem suas próprias histórias, porque na medida em que a pessoa consegue falar, ela inicia um processo de elaboração e ressignificação, o que traz força e dignidade”, explica a cineasta.
Depois de certa resistência por parte de algumas mulheres, que não revelaram nem para os próprios filhos o passado de dor e sofrimento, todas aceitaram gravar.
“Teve aí a construção de uma confiança que começa no passado, lá em 1999, e chega neste reencontro. No primeiro momento, foi complicado, mas o próprio fato de convidá-las para fazer o filme fez com que começassem a se abrir”, aponta Renata.
DROGAS E TRAUMAS
Os relatos registrados em “Se eu contar, você escuta?” são muito parecidos. As mulheres que rememoram o passado traumático para a câmera de Renata sofreram abuso sexual dos próprios pais, padrastos ou de pessoas próximas, por vezes com a anuência das mães. Fugiram de casa e, nas ruas, ainda entre a infância e a adolescência, se viram no vórtice de drogas e exploração sexual.
Até gravar os depoimentos, Renata Coimbra não conhecia o panorama completo dos abusos domésticos que as mulheres sofreram na infância. “Em 1999, estava fazendo tese de doutorado cujo foco era a prostituição infantil, termo que não se usa mais, pois quando nos referimos ao universo da criança e do adolescente, é de exploração sexual que se trata. Tinha clareza da história de abuso de uma delas, porque, na época, o caso chegou a ir para o conselho tutelar, a gente acompanhou a família e o pai abusador. Das outras, nem eu mesma sabia dos detalhes que elas contam no filme”, destaca.
Impedir que o abuso e a exploração sexual se repitam emvolve diversas questões, observa a diretora. O abuso cometido por familiares ocorre em todas as classes sociais, ao passo que exploração sexual é questão fortemente atravessada por fatores sociais, econômicos, de gênero e de raça.
“A exploração sexual tem de ser pensada no contexto da exclusão social e da miséria mesmo”, ressalta Renata.
De acordo com a cineasta e doutora em psicologia, a política de enfrentamento da situação demanda novas formas de manutenção financeira das crianças e de suas famílias, que geralmente vivem em condições de completo abandono.
“Tivemos, no atual governo, uma perda enorme de políticas públicas voltadas para esse contingente”, diz, acrescentando que outras questões contribuem para o flagelo da exploração sexual infantil, como, por exemplo, a estrutura patriarcal.
“A ideia da força e do poder masculino ainda rege muito nossa sociedade, essa coisa de o homem achar que é dono do corpo das meninas, que é algo que ele pode comprar. Some-se a isso a misoginia e a cultura do estupro. Enquanto a gente não enfrentar esses estigmas sociais e não der condições dignas de vida para as famílias, isso vai continuar acontecendo”, adverte.
"Argumentei que (o filme) seria importante para ajudar outras meninas e adolescentes. Tendo esse exemplo, elas poderiam também revelar seus casos de abuso e exploração. Seria importante para visibilizarem suas próprias histórias, porque na medida em que a pessoa consegue falar, ela inicia um processo de elaboração e ressignificação, o que traz força e dignidade'" Renata Coimbra, diretora e doutora em psicologia
PANDEMIA
A diretora e psicóloga destaca que o problema se agravou durante a pandemia. “A gente tem dados indicando que aumentaram demais tanto os casos de abusos dentro de casa quanto a exploração sexual nas ruas, porque as condições de vida pioraram muito. As meninas entram nesse ciclo de exploração por comida”, alerta.
Ao final da série de depoimentos intercalados das sete mulheres, que falam olhando para a câmera, diante de um fundo preto – e não contêm as lágrimas em vários momentos –, o filme se volta para o cotidiano delas na atualidade, revelando onde moram, as respectivas famílias e relações pessoais e de trabalho. “Se eu contar, você escuta?” mostra que elas vivem na pobreza, com dignidade.
“Daquelas oito meninas que entrevistei em 1999, uma morreu em 2011, não conseguiu largar as drogas, seguiu na prostituição, enfim, não conseguiu romper esse ciclo. Seis constituíram família, tiveram filhos. Duas têm trabalho estável, outras se viram fazendo bicos. Uma se envolveu com o tráfico de drogas e foi para o sistema prisional, mas já cumpriu a pena. Três têm casa própria e outras duas estão construindo.”, diz.
“Se a gente põe em perspectiva o que essas mulheres viveram e como estão hoje, fica evidente que tiveram muita força, lutaram muito para superar situações muito dramáticas e estabelecer uma vida mais estável. A gente vive uma crise econômica muito severa, mas pensando em tudo o que elas passaram na infância e na adolescência, posso dizer que hoje elas estão bem”, acredita Renata Coimbra.
Calendário especial de lançamento
“Se eu contar, você escuta?” tem calendário de lançamento um tanto atípico. Na última terça-feira (17/5), foi realizada sessão de pré-estreia em João Pessoa (PB). Ontem, o filme foi exibido pelo canal por assinatura Serra Geral TV, de Janaúba (MG). Nesta quinta, ele entra em cartaz em Belo Horizonte, no Una Cine Belas Artes (no próximo dia 23, às 19h, haverá sessão seguida de debate com a diretora), além de São Paulo e Brasília.
A escolha dessas cidades está ligada ao processo de feitura do filme e suas conexões, explica Renata Coimbra. São Paulo, por exemplo, é a capital do estado onde a história das meninas se passa.
Já a estreia em Brasília se deve ao fato de o documentário estar inserido no contexto do 18 de maio – data em que foi instituída, há 22 anos, a Lei 9.970. Ela estabelece o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, motivo da exibição realizada no último dia 12, na Câmara dos Deputados, realizada pela Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes.
A ligação com Belo Horizonte talvez seja a mais estreita, pois a maior parte da equipe que trabalhou no longa é mineira. “Quando comecei a pensar na realização do filme, precisava firmar parceria com produtores. Um amigo, o Pedro Carvalho, me apresentou ao Adyr Assumpção, que tem a T’AI Criação, que fica em Brumadinho”, revela Renata, referindo-se ao ator, diretor e produtor cultural mineiro. “Eles assumiram a produção e começamos, então, a levantar a questão dos recursos e também os profissionais com quem iríamos trabalhar.”
“SE EU CONTAR, VOCÊ ESCUTA?”
(Brasil, 2022, 98min, de Renata Coimbra, com Carla Marques, Cristiane de Jesus, Edineia de Oliveira, Gesiele Gabarron, Maria de Oliveira, Roberta de Souza, Silvia do Prado) – Gravações em áudio realizadas nos anos 1990 revelam a história de oito meninas vítimas de violência sexual, que viviam nas ruas. Mais de 20 anos depois, agora adultas, elas revelam a sua surpreendente saga pela sobrevivência. Documentário em cartaz a partir desta quinta-feira (19/5) no UNA Cine Belas Artes 3, às 16h.
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