"Um cemitério de vivos, sem tempo, sem esperanças, mortos vivos esquecidos e perdidos na lembrança, num depósito de gente que virou prisão de ventre dos loucos desse país", canta o musicoterapeuta Luizinho Gonzaga. A estrofe é da música Terras de Juquery, composta na década de 1980 para retratar a realidade dos internos do Hospital Psiquiátrico de Juqueri, em São Paulo, um dos maiores e mais antigos manicômios do país. A canção mostra a violência e a exclusão no tratamento das pessoas com transtornos mentais, preceitos combatidos pelo movimento antimanicomial.
Em 1987, ocorreu o Congresso de Trabalhadores de Serviços da Saúde Mental, na cidade de Bauru, em São Paulo. Esse encontro deu origem ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, a fim de combater a hostilidade dos métodos psiquiátricos, baseados na utilização de eletrochoques, lobotomia, internações compulsórias e isolamento.
Em 6 de abril de 2001, foi sancionada a Lei da Reforma Psiquiátrica. A medida é um marco na busca por tratamento humanizado, pois proporcionou o fechamento gradual de manicômios e a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), dos Centros de Assistência Psicossocial (CAPS), e das residências terapêuticas, por exemplo. Esses dispositivos do SUS visam o cuidado integral à saúde mental, por meio de equipes multidisciplinares.
Melissa de Oliveira, psicóloga e doutora em saúde pública, avalia que o principal avanço do movimento antimanicomial é a capilaridade que ele alcançou no país. “O movimento antimanicomial brasileiro tem sido apontado por vários intelectuais como uma grande referência no mundo, no que diz respeito às questões vinculadas à saúde mental. E um dos principais fatores é que não temos um movimento formado apenas por acadêmicos ou por profissionais, mas os usuários do serviço, familiares e artistas também estão envolvidos com a luta por uma sociedade sem manicômios”, comenta a especialista, ao apontar que o movimento antimanicomial deve abranger aspectos sociais para além das questões institucionais da saúde.
No entanto, mesmo após 21 anos da Lei da Reforma Psiquiátrica, o Brasil enfrenta desafios e possíveis retrocessos na garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais. Em março deste ano, o Ministério da Saúde publicou a Portaria 596, que revogou o Programa de Desinstitucionalização e promoveu o corte de recursos da RAPS. Além disso, o Ministério da Cidadania publicou um edital que destina R$ 10 milhões a hospitais psiquiátricos.
Para Humberto Costa (PT/PE), senador e presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado, essas medidas representam um grande recuo. “Destaca-se, no governo atual, sob a insígnia de ‘nova política de saúde mental’, o retorno ao modelo manicomial, com centralidade da psiquiatria, já sabidamente marcado pela violência, brutalidade e processos de exclusão e encarceramento em instituições manicomiais e seus congêneres”, alerta.
Cabe ressaltar também o crescente investimento nas comunidades terapêuticas (CTs), entidades privadas, grande parte de cunho religioso, que visam tratar de dependentes químicos. Um levantamento realizado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e pela Ong Conectas Direitos Humanos aponta que, entre 2017 e 2020, o montante de recursos federais destinados às CTs chegou a R$ 330 milhões.
“A tendência mais provável é que o investimento continue crescendo, especialmente por parte do governo federal, que faz do repasse às CTs o eixo principal de sua política de cuidado a quem faz uso problemático de drogas”, ressalta o documento. No entanto, as CTs são alvos de críticas de especialistas e até de denúncias por torturas e conversões compulsórias.
Segundo Bruno Logan, psicólogo e especialista em redução de danos, as comunidades terapêuticas e os hospitais psiquiátricos têm uma relação de semelhança por serem fundamentados na lógica manicomial. “Antigamente, os manicômios trancavam as pessoas dentro de espaços físicos, hoje as comunidades terapêuticas trancam as pessoas em espaços ideológicos, porque para elas o sujeito só estará curado, livre ou salvo se estiver em abstinência”, explica.
O especialista cita ainda que a redução de danos é uma estratégia de saúde pública que busca mitigar os efeitos do consumo de drogas, sem que o foco seja a mera privação do uso pelo indivíduo. “É pautada na garantia dos direitos humanos e coloca o usuário como o foco do cuidado. Enquanto a política manicomial e proibicionista foca na droga”, resume o psicólogo.
Antimanicomial: negação e afirmação
O sentido da palavra antimanicomial compreende negação e afirmação. "Ao passo que o movimento é antimanicômio, ele é a favor de muitas coisas", destaca Melissa de Oliveira. "O Franco Basaglia, que foi um psiquiatra italiano e grande inspirador do processo antimanicomial brasileiro, dizia que o manicômio tenta oferecer a falsa ideia de que uma instituição pode dar conta de tudo. A desinstitucionalização nega o manicômio justamente quando abre um leque de outras necessidades para o sujeito", completa.
Portanto, para Melissa, a desinstitucionalização não é a mera desospitalização, mas sim a negação de uma instituição que reduza o indivíduo ao diagnóstico. Ao negar o manicômio, o movimento antimanicomial luta para assegurar uma atenção integral às pessoas em sofrimento psíquico. Além de um tratamento interdisciplinar, é necessário pensar em "políticas públicas voltadas a diversas perspectivas de vida, porque o sujeito é múltiplo, e ao passo que ele não é reduzido à doença, precisará de trabalho, educação, moradia, arte, cultura e lazer", ressalta a psicóloga e doutora em saúde pública.
Autonomia e inclusão
A autonomia e a inclusão no tratamento de pessoas em sofrimento psíquico são fundamentais, porque o indivíduo passa a estar ativamente envolvido no processo. A aplicação desses princípios de liberdade, dignidade e inserção social constituem a “negação do sujeito assujeitado reduzido ao seu diagnóstico ou às medicações”, como acentua a psicóloga Melissa de Oliveira.
De acordo com ela, é impossível pensar o tratamento e obter resultados sem ter o envolvimento do indivíduo, integrado à participação de profissionais e familiares. “O que a gente tem, muitas vezes, são vários processos de frustração, a gente costuma dizer que a pessoa não aderiu ao tratamento, mas eu nego essa frase, não existe isso, quem não está aderindo ao sujeito é o serviço, que quer apresentar respostas prontas”, defende.
No Distrito Federal, um dos espaços que se destacam na humanização do tratamento de transtornos mentais é a clínica Anankê. Fundada em 1991, o centro de atenção à saúde mental tem a arte como principal recurso terapêutico. De acordo com Adriana Quirino, psicóloga e coordenadora clínica do centro de convivência da Anankê, apesar de o espaço de convivência ser um único lugar, ele possui diferentes sentidos para cada paciente.
“Na segunda-feira, temos a função de acolher o que vem do final de semana, porque são momentos de uma convivência maior com as famílias ou de acontecimentos sociais que podem trazer uma instabilidade maior para os pacientes. Na terça-feira, realizamos atividades com outros recursos sem ser o verbal, como as artes plásticas com o ateliê pela manhã e atividades corporais à tarde. Na quarta, temos uma atividade coletiva de fala, para vermos as questões de convivência entre eles e entre a clínica”, elenca. A profissional explica ainda que as tardes das quartas são para ouvir projetos que os próprios pacientes sugerem, como feira de livros.
A programação semanal segue com meditação nas manhãs de quinta e palco aberto para expressões artísticas no período vespertino. E, por fim, nas sextas são realizadas roda de leitura e oficina de culinária. “Além dessas atividades, existem os grupos de psicoterapia e de medicação para cada paciente”, completa Adriana, ao ressaltar que as necessidades são avaliadas individualmente pelos profissionais.
Para Marcia Henning, diretora Administrativa da clínica, a arte é um recurso terapêutico valioso, porque oferece várias linguagens de expressão. “A ideia é oferecer maneiras de as pessoas se expressarem, porque às vezes é muito difícil falar do sofrimento e elaborá-lo a partir da fala”, diz. A Anankê tinha uma companhia de teatro, mas as atividades foram interrompidas por causa da pandemia. Marcia ressaltou que os roteiros e figurinos eram construídos em conjunto com os pacientes, terapeutas e estagiários. Guerreiros do Sol e Romeu e Julieta - Uma Ópera Rap são algumas das principais peças da companhia teatral.
O afeto catalisador proposto por Nise da Silveira
Nise da Silveira foi uma psiquiatra que revolucionou o tratamento às pessoas com transtornos mentais. Nascida em Maceió, no ano de 1905, ela fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional no Centro Psiquiátrico Pedro II. Nise estimulava os pacientes a participarem de atividades como pintura e modelagem. E, em 1952, criou o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro.
De acordo com Thatiana Ayres, terapeuta ocupacional e mestre em bioética, Nise defendia a boa relação entre médico e paciente como uma das questões fundamentais do tratamento. “Nas oficinas de terapêutica ocupacional realizadas por Nise, o profissional era um ponto de referência, que atuava como um catalisador de afeto e estava sempre ao lado do paciente, disponível para ajudar e compreendê-lo”, lembra a especialista.
Thatiana ressalta ainda o pioneirismo libertário de Nise na reforma psiquiátrica no Brasil. “Ao analisar as narrativas das obras de Nise, é possível verificar que o discurso e prática clínica aproximavam-se do referencial dos direitos humanos do paciente. Sua abordagem era humanista no processo de cuidado, centrado na pessoa, pautado no afeto, compreensão, liberdade, no respeito ao ser humano e sua liberdade”, pontua.
Os direitos humanos do paciente ainda constituem um conceito pouco conhecido no país. “Infelizmente, no Brasil não há uma lei nacional de direito dos pacientes. Existem algumas leis estaduais que não foram suficientes para conscientizar a sociedade e para criar uma mentalidade nos profissionais de saúde sobre o seu papel. Assim, é essencial que o Projeto de Lei nº 5559/16, que dispõe sobre o Estatuto do Direito do Paciente, seja aprovado pelo Senado Federal”, defende Thatiana.
*Estagiária sob supervisão de Mariana Niederauer
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