No aniversário de 134 anos da Lei Áurea, pela abolição da escravatura, o Brasil enfrenta um choque de realidade: 2022 pode ser o ano com o maior número de pessoas em situação de trabalho análogo à escravidão no país desde 2013. Segundo o Radar SIT, Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, 500 trabalhadores foram resgatados nessa condição degradante até o momento.
O número deste ano foi impactado pelo resgate de 273 trabalhadores em uma única ação realizada no mês de janeiro em uma usina de cana-de-açúcar de Minas Gerais. O estado lidera o ranking deste ano. Segundo painel de informações e estatísticas SIT, Goiás está em segundo lugar, com 29 trabalhadores em condição de escravidão, seguido de Mato Grosso do Sul, com 22 resgatados. Rio Grande do Sul e Bahia têm 18 e 17 pessoas libertadas, respectivamente. Historicamente, o estado com a maior quantidade de resgatados é o Pará, com 13.775. Em 2019, antes da pandemia atingir o país, Brasília ocupou a 6ª posição: 69 pessoas.
“O trabalho análogo ao escravo acontece quando o empregador explora a condição de vulnerabilidade do empregado, principalmente socioeconômica. É tirar das pessoas os seus direitos mais básicos”, explica a procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso, coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do MPT.
Atualmente, mais da metade da população brasileira vive, em algum grau, situação de insegurança alimentar, e 9% sofre insegurança alimentar gravíssima, segundo levantamento do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19. Esse cenário facilita a atuação de aliciadores. Ainda segundo os estudos, 80% das vítimas de escravidão são negras, 47% nordestinas e 6% analfabetos, como mostra a Inspeção do Trabalho.
Outro fator que contribui para o trabalho escravo contemporâneo é a vulnerabilidade documental, em particular com imigrantes. “Quando a gente vê que está tendo uma crise migratória em algum lugar e que o Brasil está recolhendo essas pessoas, a gente já fica de olho, porque é bastante comum”, revela a coordenadora.
Falha
Apesar da tendência de alta neste ano, os números podem não ser precisos. Isso porque falta fiscalização. Segundo Lys Cardoso, a equipe atua com 40% do contingente, o que dificulta a cobertura do território. “Temos que reforçar o combate, estruturar melhor as equipes. Quando digo combate, é no sentido da punição, até porque existe uma sensação de impunidade. Também temos que garantir o acesso aos direitos básicos dos trabalhadores: educação, trabalho, terra, moradia, saúde, alimentação… isso tudo é direito fundamental, está na Constituição”, ressalta a procuradora do Trabalho.
A maior parte das vítimas de escravidão contemporânea são forçadas a atuar em áreas rurais, onde o acesso dos agentes é mais custoso. A parcela corresponde a cerca de 80% do total de casos, conforme dados da Conaete. Na opinião de Cardoso, esse fenômeno está relacionado à falta de uma reforma agrária, que permite uma grande concentração de terras na mão de poucos.
O professor na Escola de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Rodrigo Dantas, alega que os números do trabalho escravo são “talvez o símbolo mais eloquente do enorme retrocesso econômico, social, político, cultural, humano e civilizatório que tem sofrido o nosso país nesses últimos anos”.
Dantas critica particularmente a reforma trabalhista, aprovada recentemente. “A situação de fome, de desemprego, piorou muito, especialmente depois de 2016. A Reforma Trabalhista praticamente acabou com os direitos trabalhistas, praticamente acaba com a aposentadoria. Então as pessoas são lançadas numa situação em que, para sair da fome, se submetem a uma precariedade generalizada, salários decrescentes”, observa o professor.
Marcela Soares, professora de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), acredita que, para entender o trabalho análogo ao escravo no Brasil, é necessário considerar a formação social e econômica do país. “É preciso pensar nesses componentes históricos e estruturais que compõem as especificidades na realidade brasileira, na constituição do seu mercado de trabalho, que é racializado, regionalizado e vai ter um heterogêneo acesso ao mercado de trabalho”, argumenta.
“O trabalho escravo acompanha essa diversidade de entrada no processo de permanência e reinvenção do que a gente pode chamar de formas transitórias de exploração de força de trabalho no pós-abolição. Essas formas de escravização são refuncionalizadas porque cumprem o papel de compensar as transferências de valor como intercâmbio desigual entre os países de economias hegemônicas e os países periféricos como o nosso”, observa.
Denuncie
Para denunciar situações de trabalho análogo à escravidão, disque 100 ou utilize o aplicativo MPT Pardal, do Ministério Público do Trabalho. Neste meio, é possível anexar arquivos de fotos e vídeos.
No Rio, mulher explorada por 70 anos
Uma idosa de 84 anos foi resgatada por auditores-fiscais da SRTb/RJ em condições análogas à escravidão. Ao longo de 70 anos em que esteve a serviço da casa de uma família, a doméstica não recebeu salário e não teve direito às férias e folgas. Este é o caso com maior período já registrado pela Inspeção do Trabalho. O empregador terá que pagar aproximadamente R$ 110 mil, referente aos últimos cinco anos de atividades realizadas.
O resgate teve início no dia 15 de março. Por se tratar de uma residência, localizada na zona norte da capital fluminense, a inspeção foi autorizada por meio de mandado judicial concedido nos autos de processo em trâmite na 30ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, em ação ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, que também participou da operação. A empregada foi encontrada dormindo em um sofá, no espaço improvisado como dormitório.
A mulher, negra, exerceu por sete décadas tarefas como cozinhar, lavar e passar roupas, varrer o quintal e fazer compras na feira. “As informações colhidas nos permitiram concluir, em síntese, que os pais da trabalhadora laboravam em uma fazenda da mesma família, que levou a criança, em caso de trabalho infantil, para a capital, prometendo oferecer estudo, mas na realidade com o objetivo de fazer os serviços da casa”, explicou o auditor-fiscal do Trabalho Alexandre Lyra, que participou da operação.
Sem estudo
O órgão constatou também que, apesar da idade avançada, a mulher continuava exercendo suas atividades, principalmente como cuidadora da patroa, que possui faixa etária semelhante. A equipe flagrou vínculo de emprego sem pagamento de salários, direito às férias e folgas, em uma jornada de trabalho de sete dias por semana. “Foi alegado que era ‘como da família’, mas a ela não foi permitido o estudo, ela nunca teve o direito de conduzir a própria vida, embora nenhuma doença ou fato similar lhe tire essa capacidade”, prosseguiu Lyra.
Além da mulher submetida a trabalho escravo, prestaram depoimento aos fiscais o núcleo familiar dos empregadores; parentes da vítima, residentes do interior do estado do Rio; e vizinhos da casa onde ocorreu o flagrante. Eles confirmaram como teve início ou se desenvolveu a relação de emprego. “Os parentes relataram que tentaram contato por mais de 150 vezes desde dezembro de 2021 e que somente uma vez conseguiram”, disse o auditor.
A equipe notificou o empregador após o afastamento da idosa. Informou da necessidade da assinatura da Carteira de Trabalho por meio do lançamento no eSocial e do pagamento das verbas rescisórias devidas no prazo de 10 dias. O valor fixado inicialmente foi de R$ 110 mil, referente aos últimos 5 anos de trabalho. Além disso, os fiscais emitiram a guia de seguro-desemprego para trabalhador resgatado, que garante o recebimento de três parcelas de um salário mínimo cada (R$ 1.212).
*Estagiária sob supervisão de Carlos Alexandre de Souza
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