A maior parte do povo munduruku vive na extensão do Alto Tapajós, especialmente, no afluente, o rio Cururu, no sudoeste do Pará, a mais de 1.000km da capital Belém. A região possui fartura em ouro e se tornou o segundo maior foco de garimpos ilegais no Brasil, segundo o Instituto Socioambiental (ISA) — ficando entre os ianomâmis, em Roraima, e os caiapós, também no Pará.
A atividade tem colocado a vida de milhares de mundurukus em risco, pois os rejeitos e sedimentos de mineração são jogados nos rios e contamina os afluentes e os peixes, fazendo com que os indígenas tenham alta concentração de mercúrio no sangue. Desde 2017, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realiza pesquisas nessa população e revelou que, seis em cada 10 mulheres da etnia, em idade fértil, possuem níveis de mercúrio acima do tolerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A substância é tóxica e transmitida de mãe para filho. Assim, a notícia desanima a procriação.
"Aí a criança já nasce aleijada, por causa do mercúrio, sem orelha. Tem um bocado já. O doutor disse que é mercúrio que faz assim com as pessoas. Nós que somos pais, nossas mães, já estão todos doentes com mercúrio. Peixe doente, água contaminada, Tapajó já contaminado", afirma o cacique geral do povo munduruku, Arnaldo Kabá. Ainda segundo os dados da Fiocruz, 60% dos indígenas da aldeia Sawré Muybu estão contaminados.
Há cerca de 140 aldeias mundurukus espalhadas nas margens do rio Tapajós, com mais de 24 mil indígenas da etnia, numa extensão de 2.700 hectares. Dados do ISA mostram mais de 80 pontos de mineração ilegal dentro da área da tribo.
Confira os principais pontos da entrevista do cacique Arnaldo concedida ao Correio, quando ele estava no Acampamento Terra Livre (ATL), entre 4 e 14 de abril, em Brasília.
História
Ali na nossa região, na época que conheci não tinha nada de problema. Meu pai, que era o primeiro cacique geral. Morreu com 103 anos de idade, em 2013, e me indicou para ficar no lugar dele. Hoje, eu tenho 65 anos de idade, mas eu estou lutando pelo meu povo desde cedo. Antes, não tinha nenhum branco no meio de nós, onde me criei, na aldeia Cabitutu. O índio, naquele tempo, vivia em várias terras, de tempo em tempo se mudava. Não tinha nada de problema, tinha fartura, fazia roça, plantava mandioca. Mas, agora, não. Agora mudou. Tem 10 anos que assumi a aldeia, mas hoje em dia eu não paro mais na minha aldeia. Como cacique, a responsabilidade é muito pesada para a gente. A gente não dorme direito, muita preocupação.
Garimpeiros
Eu conheci os garimpos quando eu tinha 12 anos. Até eu trabalhei no garimpo, mas era manual, não tinha maquinário, nem sujava água. Não tinha máquina naquele tempo. Era pouca gente, só indígena mesmo. Tinha mais respeito pela natureza porque não tinha nada. Mas, agora, a gente tá estranhando muito. Foi em 2010 que ficou mais forte. Nossa área está demarcada. Aí, outro cacique, lá no canteiro de área indígena, abriu a porta e o garimpeiro entrou. Depois que os garimpeiros chegaram, fomos lá ver eles subindo o rio das Tropas. Tinha muita cachaçada, droga, armas, quase nos mataram. Sorte que eu estava com 60 guerreiros. De lá para cá, até agora, ninguém mais está aguentando. E agora é assim: eles saem e outros entram. Tá tudo destruído já. Tem peixe, mas só que contaminado, não está bom para comer não.
Mercúrio
O doutor tirou nosso sangue, fez exame e deu tudo positivo (para mercúrio). Quer dizer, estamos todos doentes. Aí a criança já nasce aleijada, por causa do mercúrio, sem orelha. Tem um bocado já. O doutor disse que é mercúrio que faz assim com as pessoas. Nós que somos pais, nossas mães, já estão todos doentes com mercúrio. Peixe doente, água contaminada, Tapajó já contaminado.
Alimentação
Tá acabando com a alimentação (o garimpo). A gente tem que se preparar, estudar para poder criar nossos filhos. Comer a comida de vocês, frango, porco de casa, criar o peixe, criar gado, só assim que podemos viver. A única coisa que indígena pode fazer é isso, porque nós já somos civilização. Porque os nossos antepassados não andavam assim. A cultura deles era diferente.
Governo estadual
O governo do Pará parece que não tem nem governo pra lá. Nem liga. Ele também nunca procurou a gente. Nunca mandou o pessoal dele para fazer consulta com o povo indígena. Nem daqui né. Não tem diálogo nem com o governo do estado nem municipal. A gente está esquecido por lá, triste.
Descaso
Dizem que até a Funai tá no meio deles, do governo. Por isso, eles nunca mais foram fazer visita dentro das aldeias. Nunca. Eles não querem esculhambação. O pessoal da Funai lá de Itaituba nunca vai fazer visita. Mas eles estão com medo também. Não com medo dos garimpeiros, mas de pegar esculhambação, pelo que eu entendo. Porque muita gente de Itaituba estava ligado com eles também, com o governo, e só fazem o que mandam. É isso o que está acontecendo na nossa região, no Mundurucania, Alto Tapajós.
Migração
Isso eu acho muito errado. Porque tem muitos munduruku morando dentro da cidade, principalmente, da comunidade do rio do Cururu, que tem muita fartura. Não tem garimpo ainda. Mas eles vão embora só por causa da distância, e nisso eu até dou razão para eles. Muito longe onde eles moram. Mas é que hoje em dia não sabem mais remar. Aí fica ruim também e minha voz fica fraca, se eu posso dizer para um branco para sair (da terra indígena). Ele pode me pegar: "porque então que seu pessoal não está morando na aldeia?" Isso é difícil.
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