Na Sexta-Feira Santa, o padre Júlio Lancellotti, pároco da paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, e uma das maiores personalidades de São Paulo (SP), foi parado durante a Via Sacra do Povo por policiais militares e guardas metropolitanos para apresentar documento de identificação. Liberado, o padre seguiu a peregrinação pelas ruas do centro da capital paulista acompanhado por líderes de movimentos sociais e moradores de rua, público-alvo das suas mobilizações junto à sociedade, rumo à celebração da Páscoa, quando os católicos celebram a ressurreição de Jesus Cristo.
Em entrevista ao Correio, o padre Júlio, como é chamado entre os pobres, relata o episódio ocorrido em frente à Prefeitura de São de Paulo e analisa o evento como mais uma ação da polícia movida pela "aporofobia", o preconceito contra pobres agora explícita no país.
O que ocorreu durante a Via-Sacra?
A Via-Sacra do Povo se realiza todos os anos, mas não foi realizada durante os dois anos da pandemia, tendo sido retomada neste ano. É uma caminhada que fazemos sempre para aproximar a reflexão da Paixão de Cristo com a "paixão" do sofrimento da população em situação de rua. Neste ano, nós começamos como sempre, nos concentrando às 8h no Largo de São Bento e saímos de lá às 9h. A concentração é ao lado de uma cabine da Polícia Militar que fica bem em frente à Igreja de São Bento e do mosteiro (de São Bento). Durante esta uma hora ,os policiais militares não nos perguntaram nada, quem éramos, para onde iríamos, o que fazíamos, embora eles tenham visto a nossa carroça de som, as carroças que nos acompanharam, as flores, os cobertores, o som, as bandeiras, os cartazes, as imagens; eles viram tudo mas não procuraram nenhuma informação. Saímos às 9h e paramos primeiro na Secretaria da Assistência Social, no mesmo prédio em que a secretaria das prefeituras regionais funciona. Lá, foi feito um momento de oração pela reivindicação de que o povo que está nas ruas precisa de uma política habitacional. Também foram estendidos cobertores nas ruas, quando muitos deitaram nos cobertores para protestar contra a forma comum que a zeladoria urbana age, que o povo chama de "rapa". Após, seguimos caminhando para pararmos em frente ao gabinete da prefeitura próximo da Igreja de Santo Antônio, no Largo do Patriarca, e esse percurso do Largo de São Bento até a Praça do Patriarca, esquina com Viaduto do Chá, onde está a sede da Prefeitura Municipal, levou cerca de uma hora por ser uma extensão grande de uma mesma rua, a Líbero Badaró, que é bastante íngreme com descidas e subidas. Quando chegamos diante do gabinete do prefeito, os cobertores que tinham sido colocados no chão foram colocados nas grades que cercam o gabinete do prefeito e, também, a carroça que vinha com as flores vinha ali. As flores brancas foram jogadas em direção ao prédio da prefeitura dizendo “vocês nos tratam com crueldade, nós devolvemos com flores”. Ali, percebemos uma movimentação de guardas civis metropolitanos que falavam ao celular ou em rádio de comunicação, que estavam chamando a polícia militar, acionando a PM. Enquanto estávamos lá, pessoas em situação de rua estavam dando seus depoimentos bastante fortes bastante, sofridos e vivenciados quando chegaram quatro PMs, entre eles, uma mulher, que queriam que eu saísse do meio ali onde eu estava e os acompanhasse até é um lugar onde houvesse mais silêncio, segundo eles, para que pudessem falar. Eu disse que não podia sair, já que estava coordenando com o microfone a fala dos das pessoas em situação de rua. Eles disseram que não sabiam o que era aquilo, que não tinham sido avisados, que não tinha autorização e exigiram meu documento de identificação. Eu apresentei o RG e fotografaram. Como houve muita movimentação e quando a polícia entrou, agitou o grupo, eles acabaram saindo. Seguimos nosso momento de reivindicação, de oração, de reflexão, caminhamos até a Secretaria da Segurança Pública, que está no caminho, e lá também entregamos flores para os PMs. Paramos logo depois, diante do convento no Largo de São Francisco, onde foi feito um momento de reflexão de oração e partilha do pão. O ato terminou nas escadarias da Sé, com uma apresentação teatral muito bonita sobre dependência química. Sentamos ali e tivemos um momento de oração, inclusive, com a presença de um sheik e um “pai de santo”, e ao final foi partilhado um lanche com todos os que vieram. Cerca de 300 pessoas estavam reunidas quando um guarda civil metropolitano interpelou 12 moradores de rua que estavam com camisetas da pastoral dizendo que eles estavam naquela manifestação e os agrediram.
A que o senhor credita esse tipo de situação?
Vejo uma escalada de intervenções e conflitos com a população em situação de rua, seja com as forças de segurança, com a Polícia Militar, a guarda civil metropolitana, os grupos de segurança particular e a população em geral. O aumento da população de rua traz uma sensação de incômodo, uma sensação que acaba revelando a aporofobia, isto é, o rechaço aos pobres que está presente nas pessoas e nas nossas estruturas e faz com que haja um aumento alarmante de violência, de intolerância com a presença das pessoas em situação de rua e, quando eles se manifestam, quando grupos como a pastoral de rua ou outros grupos se manifestam contra essa violência, também são vítimas e também são alvo dos ataques e do cerceamento de qualquer tipo de manifestação. Veja o que está acontecendo na Praça Princesa Isabel, o subprefeito da Sé chegou a colocar cercas para separar a praça que ele está revitalizando das pessoas em situação de rua, que só podem ficar do outro lado da cerca. É uma violência presente, crescente e avante.
Como o senhor analisa o preconceito contra pobres na sociedade brasileira?
A aporofobia sempre esteve presente na sociedade. O que é importante agora é que ela está especificada, apontada e é mostrada. Também, com o aumento vertiginoso da população em situação de rua. Cada dia mais explícita, mas é importante destacar que a aporofobia está apontada desde o livro da filósofa Adela Cortina como um comportamento humano. Desde esse livro (lançado em 2017), esse comportamento passou a ser apontado no comportamento, na arquitetura da cidade, como forma de organizar o espaço da cidade e como é essa rejeição. As pessoas que estão nas instituições e que agem de maneira institucional rechaçam os pobres. E nem as igrejas estão livres. Muitas igrejas tem bastante obstáculos e muitos obstáculos e intervenções para afastar as pessoas em situação de rua, mas nós vemos isso em supermercados, lojas, shopping center, em agências bancárias, prédios públicos. É impressionante o número e a quantidade, a sofisticação e também, de certa forma, o jeito de te lembrar isso com decoração, com vasos, com plantas, mas que têm o objetivo explícito de afastar as pessoas que são consideradas indesejadas.
Nota da edição: Em 2017, o neologismo “Aporofobia”, desenvolvido pela filósofa espanhola Adela Cortina, professora de Filosofia Moral da Universidade de Valença, foi eleito como a palavra do ano. Tal conceito foi desenvolvido por Cortina para evidenciar o que ela chama de sistêmica rejeição à pobreza e às pessoas sem recursos.
O senhor ou a Igreja tomaram alguma providência em relação à polícia?
Nós não tomamos nenhuma atitude formal em relação à polícia militar. O coronel do comando do policiamento urbano veio conversar e disse que a ação foi considerada intempestiva e os policiais foram chamados pela prefeitura. Agora, outras providências são inúteis e como, por exemplo, ir à Corregedoria da PM, que é todo um processo burocrático institucional que é feito e organizado para que não aconteça nada e não dê em nada. Tenho experiência de mais de 30 anos com essa questão da Corregedoria da Polícia Militar e sempre que nós vemos é tudo que é feito para que não se chegue a nada.
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