Na semana passada, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou a proposta que torna crime a violência institucional - submeter a vítima de infração penal a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos que a leve a reviver, sem estrita necessidade, a situação de violência. O texto já foi enviado à sanção presidencial.
O projeto foi apresentado em resposta à conduta de agentes públicos em 2020 durante o julgamento do comerciante André Aranha, acusado, pelo Ministério Público, de estuprar a mineira Mariana Ferrer. A proposta muda a Lei de Abuso da Autoridade. Mas, enquanto a nova lei não é implacada, a família da jovem luta para que a justiça seja feito."Só pedimos Justiça e proteção para seguirmos nossa vida em paz". Esse é o grito feito pela mãe da Mariana, Luciana Ferrer.
Esta matéria compõe uma das três reportagens que mostram o impacto de violências institucionalizadas e qual a parcela de culpa da sociedade sobre essa agressão continuada sobre a vítima, que tem sua palavra constantemente questionada e seu relato traumático desacreditado por quem deveria protegê-la e até pela família ou pelos amigos mais próximos.
Mariana é mineira e, desde criança, começou a trabalhar como modelo. Em 2012, passou a ser também influenciadora. Ela se mudou para Florianópolis com a família e foi convidada para ser embaixadora do Café De La Musique. Mas sua vida mudou em 15 de dezembro de 2018. "Minha virgindade foi roubada de mim junto com os meus sonhos", relatou a jovem nas redes sociais.
Ela relata que foi puxada pelo braço por uma amiga até um dos bangalôs para fazerem uma foto juntas. A partir daí Mariana teve a amnésia temporária. "Fui levada já dopada para um lugar desconhecido por mim", contou nas redes sociais.
A investigação da polícia descobriu se tratar de uma área privada. ''O que tenho de lembranças daquela maldita noite de terror é estar descendo essa escada escura, vinha uns flashs coloridos e tinha um segurança na porta. eu estava com sensações estranhas, como se estivesse voando, não sentia meu corpo. só queria escapar dali e achar minhas amigas'', disse. Mas as supostas amizades que a acompanhavam no dia a abandonaram, negaram meus pedidos de socorro. "Consegui chegar em casa, pois tinha salvo no app meu endereço", disse.
Ela conta que segundo sua mãe, ela entrou em casa com o corpo mole, olhos vidrados e que chegou a escorregar pela parede. A mãe tirou suas roupas para jogar uma ducha e se deparou com sangue e com forte odor de esperma.
"Desde a denúncia até o corpo delito fui atendida por homens. Tive minhas partes íntimas fotografadas, fui examinada, tocada, questionada por homens. É tão humilhante, constrangedora, cruel. Me lembro de chegar a pensar: e se o agressor que não tem "rosto" for algum deles?"
Violência no curso do processo
A violência não terminou no momento da denúncia. Pelo contrário. O país ficou escandalizado com a audiência, que escancarou a violência institucionalizada e a revitimização da jovem.
Em 3 de novembro do ano passado, imagens divulgadas pelo "The Intercept Brasil" mostraram o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho humilhando Mari Ferrer durante a audiência. Na audiência, ainda foram expostas imagens manipuladas da vítima que, na verdade, são fotografias profissionais como modelo e com roupa. Não há o que se falar em "fotografia íntimas", como foi divulgado pela imprensa. "Jamais teria uma filha do nível dela", foi o que disse a defesa do comerciante André Camargo Aranha.
Foi pensando nisso que foi formulado o Projeto de Lei Mariana Ferrer, que foi aprovado em 24 de novembro. A Lei 14.245 prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos.
O advogado da jovem, Júlio Cesar Ferreira, explica ao Estado de Minas que já existe o artigo 201, parágrafo 6º, do Código de Processo Penal, que protege a vítima de abusos. Entretanto, a lei, veio como importante reforço no sentido de definir situações não contempladas."Além disso, a proteção contra abusos, agora envolve também à testemunha. Foi mais um importante passo na defesa do princípio constitucional da dignidade humana", comentou
Ele ainda pontua que pessoas continuam a divulgar, falsamente, que a audiência foi editada, no sentido de que teria sido montada. "Basta ver a audiência na íntegra e verificar que nunca existiu qualquer montagem. Se o 'Intercept' buscou mostrar apenas uma parte da audiência, isso não significa que ocorreu qualquer tipo de adulteração", disse o advogado de Mariana.
Sobre as fake news sobre adulteração das imagens da audiência, o advogado aponta que seria ''ridículo imaginar o CNJ, o Congresso Nacional, ao estabelecer a lei, e o presidente da república, ao sancioná-la, estarem se baseando em uma audiência montada ou falsa.''
"Aliás, basta ver que a humilhação já começa no início da audiência, pois Mariana foi constrangida pelo juiz e pelo promotor a virar a câmera para mostrar o local em que se encontrava, sendo que o advogado do réu gritava que iria mandar um fiscal ao local", continua.
PRÓXIMOS PASSOS
Exames mostraram conjunção carnal, ruptura do hímen e presença de sêmen na calcinha da vítima. Em 7 de outubro deste ano, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) decidiu por unanimidade manter a absolvição de André de Camargo Aranha. Em audiência realizada em Florianópolis (SC), os desembargadores Ana Lia Carneiro, Ariovaldo da Silva e Paulo Sartorato analisaram o recurso pedido pela defesa de Mariana e concluíram que não havia provas que sustentassem a acusação.
O desembargador Paulo Sartorato, em seu voto, mesmo absolvendo o réu, disse que jamais se pode dizer que Mariana mentiu, inventou uma história, ou praticou o crime de denunciação caluniosa.
"A absolvição por insuficiência de provas quanto à vulnerabilidade não serve como elemento para dizer que o fato não existiu. A absolvição de André Aranha, por dúvida quanto à vulnerabilidade, se mostra frágil. Aliás, ele também recorreu tentando mudar o fundamento da sentença, mas não conseguiu. André Aranha está absolvido, por hora, sim! Entretanto, jamais pela inexistência do fato, mas pela dúvida", aponta o advogado.
Em novembro do ano passado, Júlio Cesar Ferreira contou ao Estado de Minas que impetrou um habeas corpus na tentativa de buscar a suspeição superveniente do juiz pelo fato deste ter juntado documentos impróprios às vésperas da sessão.
"Ele não foi conhecido. Já manejei embargos de declaração para esclarecer alguns pontos. Depois, vou recorrer ao Superior Tribunal de Justiça. Quanto ao processo principal, estou aguardando a intimação do acórdão, para poder recorrer. Primeiro, farei embargos de declaração. Depois, vou recorrer para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal, na tentativa de anular a audiência e os atos posteriores, por violação da lei federal e ofensa ao princípio constitucional da dignidade humana", disse.
Por fim, ele aponta que possíveis ameaças contra Mariana e sua família não puderem ser identificadas, pois os agressores fazem uso do anonimato.
Conforme laudo médico, Mariana enfrenta estresses pós-traumáticos (TEPT), apresentando tensão, ansiedade, fobia social, síndrome do pânico, transtorno depressivo e privação do sono.
"É tão difícil conviver com toda essa injustiça. Gostaria que fosse feito um apelo por parte das jornalistas: como pode um caso com todas as provas e até com laudos do que o crime causou em sua vida e até hoje não ter tido justiça?", questionou a mãe da jovem.
PGR se reúne com mãe da vítima
Em fevereiro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, ouviu a mãe de Mariana Ferrer. Ela relatou todas essas dificuldades que afirma ter enfrentado durante todo o processo de busca por justiça para a filha, desde a investigação inicial, conduzida pela Polícia Civil de Santa Catarina, até o julgamento do acusado.
Luciane procurou Augusto Aras para pedir o que considera ser justiça para a filha. Ela recebeu como resposta a orientação para que os advogados da família encaminhem à PGR toda a documentação referente aos relatos feitos durante a audiência.
Após ser protocolado, o material será encaminhado à área competente para a análise e eventual abertura de um procedimento preparatório com vistas a um pedido de Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) - instrumento previsto no ordenamento jurídico brasileiro que permite ao procurador-geral da República, nos casos de grave violação a direitos humano - ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
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