As mudanças climáticas, os eventos extremos e a precarização de políticas públicas são fatores que dificultam a produção e o acesso aos alimentos e culminam no aumento do número de pessoas no mapa da pobreza e da fome — enquanto o crescimento do consumo de alimentos ultraprocessados pode impactar diretamente o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Com isso, o Brasil se distancia cada vez mais de um dos direitos fundamentais globais, o acesso à alimentação para todos.
A abordagem foi defendida pela professora da Universidade de Brasília (UnB), Mercedes Bustamante, membro da Academia Brasileira de Ciências e uma das principais referências no bioma Cerrado, referência internacional em clima em ambiente. A cientista participou, ontem, do Correio Talks, junto a outros debatedores.
Para Mercedes, a segurança alimentar no Brasil sofre a influência de conflitos, de mudanças climáticas, inclusive, tendo como uma das principais evidências a ocorrência de eventos extremos e recuos econômicos. "Se alguém de uma família migra, ela deixa de fazer parte de um sistema e afeta a produção de alimentos locais. Ao passo que essa mesma pessoa pode sofrer os efeitos econômicos da migração", explicou.
Como exemplo, a pesquisadora citou o esvaziamento dos conselhos consultivos da sociedade civil junto ao governo federal, como nas áreas de segurança alimentar — o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) — e de meio ambiente — o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
"Houve um esvaziamento ou encerramento dos conselhos consultivos quando a gente mais precisa deles, quando aceitamos o esvaziamento de um espaço necessário para a sociedade debater a importância da alimentação. Com isso, é preciso lembrar que o direito à alimentação é um direitos humanos fundamentais", ressaltou.
Desenvolvimento
Para a professora, um dos desafios dos governos para a produção e o acesso aos alimentos é assimilar os efeitos das questões do desenvolvimento econômico e do impacto ambiental na produção e também no consumo. "Precisamos falar sobre valores, que implica naquilo sobre o que você diz não; que não aceitamos mais esse esquema de produção ou suas consequências", defendeu.
Exemplo dessa questão é o quanto o desmatamento e a agricultura de poucos tipos de alimentos impactam a segurança alimentar. Enquanto, no mundo, 24% do total das emissões de gases do efeito estufa são oriundas da ações humanas, no Brasil, esse indicador salta para 73%. "Precisamos decidir qual o desenvolvimento que queremos ter e nos perguntar o que a nossa cozinha tem a ver com desenvolvimento sustentável", disse.
Por fim, a pesquisadora lembrou dos riscos da aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, o chamado projeto dos agrotóxicos. "O ponto crítico dessa proposta é que ela dá ao Ministério da Agricultura poderes absolutos para aprovar a liberação do uso de novos agrotóxicos no país", afirmou.
Atualmente, além do ministério, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) participam da análise da liberação dos produtos. Desde 2016, o Brasil tem sido palco de uma enxurrada de novas liberações de agrotóxicos. Naquele ano, ocorreu a liberação de 277 produtos. No ano seguinte, houve um salto para 404 novos venenos.
Em 2018, mais 449 registros foram realizados. Mas o governo de Jair Bolsonaro conseguiu ser ainda mais condescendente com o veneno agrícola. Em seu primeiro ano, 474 pesticidas foram liberados. Já em 2020, o número subiu para 493. Ao final do ano passado, o Ministério da Agricultura bateu novo recorde, aprovando o registro de 550 novos agrotóxicos.
Por isso, a cientista defende mobilizações da sociedade junto ao Congresso Nacional e aos governos para promover mais do que um ponto de vista . "A gente precisa falar com clareza que alimentação é um valor, um direito humano resguardado por várias entidades internacionais, algo a ser respeitado", finalizou.