O faxineiro Gilmar Moreira, de 41 anos, descia uma íngreme escada para chegar até sua casa no meio de um morro em Franco da Rocha, na Grande São Paulo. A construção, de quatro cômodos, foi interditada no domingo: o risco é a terra encharcada pela chuva voltar a cair em cima de tudo o que sobrou.
Uma parte já desabou por volta das 6h30 do último domingo, matando pelo menos 11 pessoas que viviam ali, uma das mais de 95 áreas consideradas de risco na cidade, segundo a Defesa Civil. Na manhã de quarta-feira (2/2), bombeiros, técnicos e voluntários ainda procuravam desaparecidos em uma pequena montanha de lama e entulho a cerca de 30 metros da casa em ruínas do faxineiro.
Em todo o Estado de São Paulo, pelo menos 27 pessoas morreram no último fim de semana, vítimas de deslizamentos e enchentes causadas pela forte chuva que atingiu vários municípios, principalmente na região metropolitana de São Paulo. Cerca de 660 famílias estão desabrigadas.
Na manhã desta quarta, em meio a uma garoa fina, Gilmar queria buscar um chuveiro e alguns fios elétricos para levar para a casa que precisou alugar às pressas depois que o barranco ruiu. "A pessoa compra uma casinha onde consegue pagar. Eu morava aqui no morro porque foi onde consegui. Se eu tivesse dinheiro, comprava em um lugar melhor, não aqui. Se você tivesse dinheiro, compraria uma casa aqui no morro?", pergunta à reportagem.
A área, com dezenas de casas cercadas por um morro de terra vermelha, termina na linha de trem que liga a região à capital paulista. A ocupação, conhecida como Jardim dos Reis, abriga construções menores como a de Gilmar, mas também sobrados com vários andares onde vivem famílias com crianças, idosos e bebês. Boa parte das casas foi interditada por risco de novos deslizamentos - outra parte, mais distante do local das buscas, ainda abriga algumas famílias.
Na manhã de quarta, os moradores foram autorizados a buscar pertences nos imóveis bloqueados. As famílias precisaram sair às pressas no domingo, deixando móveis, roupas e a vida que construíram ali nos últimos anos. Foram para casas de parentes ou alugadas na correria depois do desastre.
Gilmar, por exemplo, conseguiu locar um quarto e cozinha em outro bairro por R$ 600 mensais. "Depois do deslizamento, o preço do aluguel subiu na cidade. As pessoas estão metendo a faca, cobrando mais caro de gente que perdeu tudo. O único que encontrei foram esses dois cômodos por um preço absurdo aqui em Franco da Rocha, mas é o que tem para gente", diz.
A prefeitura está cadastrando os desabrigados para o programa de auxílio-aluguel de R$ 400 mensais, que contempla 10 mil habitantes do município, mas servidores da área de assistência social afirmam que o benefício vai demorar pelo menos um mês para ser liberado.
A prefeitura afirma que existem "cerca de 230 edificações em áreas de risco na cidade, cujo custo estimado de reparo está orçado em cerca de R$ 120 milhões, incluídas a remoção e realocação das famílias, investimento para o qual a prefeitura busca parcerias para executar".
'Boom em áreas de risco'
Baiano, Gilmar migrou para Franco da Rocha em 1999, em busca de emprego. Em 2007, comprou a casa de outra família por R$ 45 mil, dinheiro que conseguiu guardar no período. Como ele, os moradores não têm documentos de propriedade para além de recibos de compra e venda, porque a área foi ocupada de maneira informal e a prefeitura não regularizou as moradias.
"Desde que minha filha nasceu, há oito anos, passei a reformar tudo, fiz mais dois cômodos com o dinheiro que sobrava do salário. Eu mesmo pegava na massa, construí sozinho. Agora tudo acabou", diz o faxineiro, que estima ter gastado cerca de R$ 50 mil na reforma.
A história de Gilmar, o único atualmente empregado em sua casa, ilustra um boom habitacional enfrentado por cidades da Grande São Paulo como Franco da Rocha e a vizinha Francisco Morato, onde quatro pessoas também morreram (três crianças e um adolescente) em um deslizamento no fim de semana.
Em três décadas, Franco da Rocha teve um aumento populacional de 87% - de 81 mil habitantes em 1990 para 148 mil moradores em 2020, segundo projeção da Fundação Seade, órgão de análise de dados do governo de São Paulo, que se utiliza de informações do IBGE. Já em Francisco Morato a população cresceu 134%, de 74,6 mil habitantes em 1990 para 174,4 mil pessoas três décadas depois.
Para urbanistas, esse fenômeno ocorreu principalmente por causa da dificuldade que famílias muito pobres enfrentam para manter o aluguel em dia ou comprar imóveis na periferia da capital paulista. Sem opção, muita gente migrou para cidades do entorno, ocupando áreas de risco em encostas de morros e margens de córregos por um preço menor. Criou-se então um mercado informal e irregular de loteamentos, e o poder público não acompanhou esse movimento com políticas publicas de habitação eficientes, avaliam especialistas no tema.
"Esse processo é recorrente em nossa urbanização, principalmente entre a classe trabalhadora e de baixa renda. Ela acontece de maneira acelerada em áreas periféricas, com terreno frágil, sem planejamento urbano e acompanhamento técnico", diz o arquiteto e urbanista Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
"Essas cidades que cresceram muito nas últimas décadas não têm capacidade institucional nem econômica pra realizar uma politica urbana e habitacional. Nunca houve um processo contínuo de planejamento e investimento urbano com objetivos claros: essa política sempre foi fragmentada, descontínua e ineficiente. Essas ocupações se formaram à revelia do poder público", explica.
Nos últimos anos, tragédias como a desse fim de semana se tornaram recorrentes na região. Segundo levantamento da TV Globo, pelo menos 123 pessoas morreram em decorrência das chuvas entre 2016 e 2022 na Grande São Paulo. As mortes ocorreram principalmente em deslizamentos, inundações e desabamentos de moradias. Em 2015, durante um episódio semelhante, 25 pessoas morreram em cidades como Francisco Morato, Franco da Rocha e Mairiporã.
Nesta terça-feira (1/2), após sobrevoar a região, o presidente Jair Bolsonaro (PL) criticou a "falta de visão do futuro" de moradores de áreas de risco como o do Jardim dos Reis.
"A visão é algo que nos marca. Em muitas áreas onde foram construídas as residências faltou, obviamente, alguma visão, por parte de quem construiu, de futuro, bem como por necessidade as pessoas fazem nessas áreas de risco", disse o presidente.
'Ninguém vê nossa precisão'
Enquanto o faxineiro Gilmar pegava seus pertences, o comerciante Alexandre Gregório, 36, mostrava como ficou a casa da família após o temporal do fim de semana.
"Essa parede aqui da sala está toda rachada. Na hora da chuva, a água entrou pela janela do quarto da minha mãe. Tivemos que fazer uns buracos na parede para ela sair. Quando começou a cair o barranco, todo mundo saiu correndo, gritando. Estamos vivos por pura sorte. Nossa casa resistiu, mas está tudo rachado, não tem mais como ficar aqui", diz ele, que voltou ao imóvel para buscar um aparelho de som.
A família se mudou para o morro nos anos 2000, vinda da periferia da capital. "Meus pais não conseguiam mais pagar aluguel em São Paulo. Eles tinham um dinheiro guardado, compraram aqui. É o que tem para gente", conta.
Três dias depois do desastre, o comerciante se emociona ao se lembrar dos amigos que morreram. "Perdi três amigos aqui, gente que eu conheço há 20 anos. É difícil pensar... Havia uma família com um bebê. Um dia antes eu vi o pai brincando com a criança, e pensar que horas depois eles morreram..."
A irmã do comerciante, a costureira Jamile Gregório, de 34 anos, também mora no morro, mas em uma casa ao lado - também interditada pela Defesa Civil. Com cinco filhos, entre eles um bebê de 25 dias, precisou se mudar para um quartinho em um ponto do morro que não foi fechado. "Estamos amontoados, esperando para ver se alguém ajuda", diz.
A costureira, que está desempregada, comprou a antiga casa por R$ 8 mil em meados da década passada. Depois de aumentar o imóvel com outro andar, colocou o espaço à venda por R$ 80 mil, mas não recebeu propostas. Agora, terá que abandonar o local para viver de aluguel. "Na hora da precisão, você mora em qualquer lugar. As pessoas criticam, mas não veem nossa precisão... Ninguém imaginava que essa tragédia iria acontecer", diz.
'Não falam que é uma área de risco'
Na manhã de quarta-feira, a prefeitura de Franco da Rocha cadastrava famílias desabrigadas. para inclui-las no programa de auxílio-aluguel e outras políticas de assistência.
Uma delas era a do ajudante geral Claudio Pereira, 43, e sua companheira, a auxiliar de cozinha Maria Elaine Bezerra, 32, ambos desempregados. Com sete filhos, eles sobrevivem de doações de parentes e dos R$ 400 do Auxílio Brasil, programa do governo Bolsonaro que substituiu o Bolsa Família. "Nossa casa fica no começo do morro. A gente queria continuar, porque não temos para onde ir, mas a Defesa Civil não deixou. Alguém tem de nos ajudar, a gente precisa de algum lugar para morar", diz Maria.
Há sete anos a família comprou o imóvel onde viviam - uma casinha de dois cômodos - por R$ 20 mil, valor que recebeu de uma indenização judicial. "Quando alguém vende a casa não fala para você que é uma área de risco. Ninguém pensa no risco, você pensa em ter um lugar para morar com a família, para não ter mais que pagar aluguel", diz Claudio.
A prefeitura prometeu o auxílio-aluguel para a família, mas o benefício só deve ser liberado daqui um mês. Enquanto isso, eles foram viver na casa de um parente.
'Não confio'
A açougueira aposentada Edileuza Pereira, de 48 anos, era outra desabrigada na fila de cadastro. Ela estava dormindo quando o barranco desabou, no domingo. "Só ouvi alguns gritos, mas achei que era uma briga. Era o morro caindo. Meu filho entrou correndo e me salvou. Minha casa era a última na beira do barranco, mas ficou de pé", conta ela, que passou a viver no Jardim dos Reis há 18 anos, quando comprou sua moradia por R$ 8 mil.
Na fila do cadastro da prefeitura, ela se emociona ao se lembrar que, há exatos seis meses, terminou de reformar a casa que precisou abandonar neste domingo. "Gastei R$ 30 mil construindo um andar para o meu filho morar com a esposa. Não sei o que fazer, estou me sentindo um lixo", diz a aposentada, que um dia depois alugou outra residência por R$ 500 em outro bairro de Franco da Rocha.
A pouco metros dali, o faxineiro Gilmar Moreira voltava com o chuveiro e fios elétricos que foi buscar em sua casa interditada no meio do morro. "Eu até achava que dava para voltar a morar lá, mas me deu medo. Tenho uma filha pequena... A coisa está feia. Eu não confio, não", diz.
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