PANDEMIA

Brasil ainda pode evitar colapso apesar de aumento das internações, dizem especialistas

De acordo com especialistas, a situação exige muitos cuidados, especialmente nos Estados com menor taxa de vacinação, mas é possível minimizar os danos reforçando as políticas públicas que se mostraram efetivas até agora

Após um mês sem dados claros sobre a covid-19 no Brasil por conta de um "apagão" nos sistemas de informática do Ministério da Saúde, os primeiros boletins epidemiológicos publicados em 2022 apontam para um cenário preocupante: o número de infecções e internações voltou a subir de forma consistente nas últimas semanas.

Para ter ideia, a média móvel de novos casos da doença por dia saltou de 3,1 mil em 22 de dezembro para 68 mil em 16/1.

A exemplo do que ocorre em várias partes do mundo, a piora nas estatísticas tem a ver com o avanço da variante ômicron do coronavírus, que tem maior capacidade de transmissão e consegue escapar em parte da imunidade obtida após a vacinação ou um quadro prévio de covid.

Mas o que esperar da pandemia ao longo das próximas semanas?

De acordo com especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a situação exige muitos cuidados, especialmente nos Estados com menor taxa de vacinação, mas é possível minimizar os danos reforçando as políticas públicas que se mostraram efetivas até agora.

Transmissão alta, vacinação baixa

O físico Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), destaca a alta taxa de transmissão do coronavírus nessas últimas semanas.

"Atualmente, essa taxa está em 1,93 na média do Brasil inteiro. Na prática, isso significa que cada 100 infectados transmitem o vírus para outras 193 pessoas a cada dia", calcula.

Para que a pandemia esteja controlada, esse número (conhecido como Rt) precisa estar abaixo de 1. Se ele fica acima, isso significa que o número de novos casos tende a aumentar progressivamente.

De acordo com o Observatório de Síndromes Respiratórias da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), essa taxa começou a crescer no país durante o final de 2021, justamente o período marcado pela chegada da ômicron e pelas aglomerações das festas de Natal e Réveillon.

Se olharmos a situação particular de alguns Estados brasileiros, o Rt está "assustador", na perspectiva de Alves.

No Acre, por exemplo, essa taxa média está em 6,38. Ou seja: cada 100 infectados estão transmitindo o vírus para outros 638 indivíduos a cada dia.

O professor da USP também chama a atenção para outro aspecto que joga dúvidas importantes nas próximas semanas: a baixa taxa de vacinação contra a covid em algumas partes do país.

"Nós temos vários Estados brasileiros com uma cobertura de duas doses abaixo dos 60%, o que é bem preocupante", aponta.

Vale lembrar que, de acordo com as evidências científicas disponíveis, o esquema completo de vacinação continua a proteger contra os casos mais graves de covid, relacionados à hospitalização e morte.

No Brasil e no mundo, a maioria dos internados, mesmo durante a atual onda da ômicron, é constituída de indivíduos que ainda não foram imunizados adequadamente.

Até o momento, Mato Grosso (60% da população com duas doses), Pará (59%), Rondônia (59%), Alagoas (55%), Amazonas (54%), Tocantins (54%), Maranhão (51%), Acre (51%), Roraima (42%) e Amapá (39%) se encontram nessa situação, como informa o repositório Coronavírus Brasil.

"Estamos falando, portanto, de locais com uma taxa de transmissão do coronavírus elevada e com uma cobertura vacinal bem abaixo do necessário", analisa Alves.

"Com isso, podemos esperar para as próximas semanas um aumento nas internações, com uma possibilidade grande de colapso hospitalar, especialmente nas capitais desses Estados", projeta o especialista.

O colapso acontece quando os serviços de saúde públicos e privados não são mais capazes de absorver a demanda de pacientes. Com isso, muitos desses indivíduos podem sofrer complicações e morrer pela falta de cuidados e tratamentos.

O epidemiologista Jesem Orellana, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) Amazônia, concorda com as projeções.

"Em termos de disseminação viral, vivemos um momento muito semelhante, ou até pior, ao que vimos em 2021", acredita.

"A grande diferença está na vacinação, que acaba limitando de forma dramática a explosão de casos graves de covid", complementa.

O que dizem os boletins da FioCruz

Após o apagão de dados que atingiu o Ministério da Saúde no início de dezembro, o Brasil ficou sem os seus principais indicadores da pandemia por mais de um mês.

Com as bases de dados restabelecidas recentemente, esses relatórios voltaram a ser publicados após quatro semanas. As notícias, porém, não são nada boas.

Segundo o último Boletim Infogripe, publicado em 14/1 pela FioCruz, houve um aumento de 135% nas internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) na comparação entre as três últimas semanas de novembro e os primeiros dias de janeiro.

O número de pacientes hospitalizados por esse quadro, que pode ser provocado por coronavírus, influenza e vírus sincicial respiratório, entre outros, saltou de 5,6 mil em novembro para 13 mil mais recentemente.

O pesquisador Marcelo Gomes, coordenador do boletim, destaca que a velocidade com que a SRAG se espalha semanalmente entre a população cresceu de 4% para 30% nesse período.

A análise ainda revela que 25 das 27 unidades federativas têm sinal de crescimento das hospitalizações por SRAG nas últimas seis semanas — as únicas exceções são Rio de Janeiro e Roraima, que apresentam números estáveis ou com oscilações mínimas nesse mesmo período.

Já uma nota técnica do Observatório Covid-19 divulgada em 12 de janeiro, também feita na FioCruz, detectou um aumento na ocupação de leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) dedicados à doença nessas últimas semanas.

Por ora, apenas Pernambuco está em um nível crítico, com 82% dos leitos em uso.

Mas a situação passou da zona alerta baixo para intermediário em outros sete Estados — Pará (71% de ocupação), Tocantins (61%), Piauí (66%), Ceará (68%), Bahia (63%), Espírito Santo (71%), Goiás (67%) — e no Distrito Federal (74%).

Para a pesquisadora Margareth Portela, uma das autoras do relatório, esse aumento na ocupação dos leitos de UTI deve alertar os gestores públicos, mas ainda não há motivo para pânico.

"Esses dados nos mostram que houve um crescimento e é hora de prestar atenção nisso. Os gestores devem começar a acionar planos de contingência e reativar leitos caso a demanda continue a aumentar", sugere.

Portela explica que, com a queda nos casos e nas mortes por covid-19 no segundo semestre de 2021, muitas cidades e Estados desativaram vários leitos, já que a demanda de pacientes era bem menor.

Em 2 de agosto de 2021, Pernambuco tinha 1.460 postos de UTI à disposição, por exemplo. Já em 10 de janeiro de 2022, esse número estava em 857.

Há, portanto, uma margem para reativar os leitos se a demanda crescer, conforme mostram as projeções.

"É importante que os governos tenham essa capacidade gerencial para acionar os serviços e ampliar os sistema de saúde na medida em que isso se mostrar necessário", acredita Portela.

"Mas, apesar do alerta, não vislumbro que viveremos agora aquele mesmo caos que tivemos entre março e junho do ano passado. Entre esses dois momentos, tivemos o avanço da vacinação e estamos em outro momento da pandemia", completa a pesquisadora.

Indícios que vêm de fora

Uma terceira fonte de projeções do que pode ocorrer no Brasil durante as próximas semanas vem do Instituto de Métricas em Saúde (IHME) da Universidade de Washington, nos Estados Unidos.

O site aponta que o país já está "subindo a ladeira" na taxa de hospitalizações por covid e deve atingir um pico na ocupação dos leitos de enfermarias e UTIs entre o final de janeiro e o início de fevereiro, como mostra o gráfico a seguir.

As mortes por covid também devem voltar a subir nesse mesmo período e, caso as contas estejam corretas, devem bater os 1,2 mil óbitos por dia nas primeiras semanas de fevereiro.

Ainda segundo o IHME, a tendência é que esses números voltem a cair e se estabilizem num patamar mais baixo entre o final de fevereiro e o começo de março.

Esse mesmo padrão tem sido observado nos países que estão com a onda de ômicron mais adiantada, como Reino Unido e África do Sul: depois de alcançar recordes de novos casos, a curva epidêmica desses locais começa a cair de forma consistente.

Ainda não dá pra ter certeza que o mesmo vá acontecer no Brasil ou se a variante se comportará de forma diferente (pra melhor ou pra pior) por aqui.

Para Alves, da USP, é provável que a situação brasileira se assemelhe mais ao que ocorre nos Estados Unidos, em que a gravidade pandêmica varia muito de acordo com a região.

"É possível que, dentro do país, os locais com uma taxa de vacinação mais alta saiam mais rápido dessa onda, enquanto nos lugares com menos indivíduos que tomaram as duas ou as três doses vivam esse problema por um tempo prolongado", avalia.

Mas a ômicron não é mais leve?

Um fator que gera muita dúvida são as afirmações de que a ômicron é menos agressiva e está por trás de quadros mais brandos — de fato, algumas pesquisas preliminares apontam que a variante se replica melhor na garganta e pior nos pulmões, além de estar relacionada a uma menor taxa de internação até agora.

O que explicaria então esse aumento em hospitalizações e mortes, observada em vários países e que começa a se desenrolar no Brasil?

Em primeiro lugar, esses estudos ainda precisam ser revisados e confirmados. Os resultados deles também podem ser influenciados pela vacinação, uma vez que as doses sabidamente protegem contra as complicações da covid.

Segundo, é preciso considerar a enorme quantidade de infectados pela ômicron — assim, mesmo se uma porcentagem menor deles desenvolver quadros graves, o número absoluto ainda será bastante elevado.

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Individualmente, a ômicron até pode causar quadros mais leves. Coletivamente, porém, a enorme quantidade de casos ainda provoca estragos

Para explicar melhor essa questão, podemos aproveitar o exemplo dado pelo pesquisador em saúde pública Leonardo Bastos, da FioCruz, numa série de postagens do Twitter.

O especialista supôs que a ômicron tenha uma letalidade dez vezes menor (os números não necessariamente refletem a realidade). Ou seja: se a letalidade das outras variantes girasse em torno de 1% do total de infectados, estaríamos considerando uma taxa de 0,1% para essa nova versão do coronavírus.

"Se 1 milhão de pessoas se infectarem [com a ômicron], espera-se mil óbitos. Se forem 10 milhões de infectados, serão 10 mil óbitos", calculou Bastos.

"Se isso se concentrar num período curto de tempo, teremos um problema mais grave ainda", escreveu.

O cientista da computação Jones Albuquerque, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, concorda.

"Mesmo com uma agressividade eventualmente menor, a taxa de transmissão muito mais elevada da ômicron pode ser um fator decisivo para o colapso de recursos e dos sistemas de saúde", diz.

Como conter essa onda?

Na visão dos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, os gestores de saúde pública precisam ficar de olho nas taxas de ocupação de leitos e abrir novas unidades em enfermarias e UTIs, se necessário.

Eles também reforçam a necessidade de acelerar a vacinação com duas ou três doses, especialmente nos Estados mais atrasados, e dar atenção especial às crianças de 5 a 11 anos, que foram incluídas na campanha de imunização nos últimos dias.

Orellana, da FioCruz Amazônia, entende que o Brasil já deveria ter melhorado a vigilância epidemiológica da covid e investido na capacitação de mais profissionais de saúde para o atendimento de emergência e a terapia intensiva.

"Entramos no terceiro ano de pandemia e ainda não há no Brasil uma política clara de controle da disseminação do vírus, testagem em massa ou qualificação dos recursos humanos", critica.

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Vacinação de crianças é essencial para conter a pandemia

Albuquerque, que também é membro da Academia Pernambucana de Ciências, entende que é hora de evitar aglomerações e grandes eventos.

"Não podemos dar margem para o vírus se disseminar mais e eventualmente surgirem variantes ainda piores", alerta.

"Também é urgente apertar as medidas de saúde coletiva, como o uso de máscaras de qualidade e a exigência do passaporte vacinal para entrar em lugares públicos", acrescenta Portela.

"Seria interessante, aliás, que houvesse alguma política pública de distribuição de máscaras mais seguras, como a PFF2", sugere Alves, que acha difícil pensar num lockdown no atual estágio da pandemia.

"Dessa vez, a restrição das atividades será determinada não pelas autoridades, mas pelo próprio vírus. É provável que setores como a aviação, as agências bancárias e lojas de shoppings precisem ser fechadas por um tempo justamente pelo afastamento de funcionários infectados com o coronavírus", finaliza o professor da USP.


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