Documentos obtidos pela BBC News Brasil a partir de investigações e operações conduzidas por órgãos federais mostram que a "espinha dorsal" da estrutura logística dos garimpos ilegais na Terra Indígena Yanomami é formada por um esquema de desvio de combustível de aviação, centenas de pistas de pouso clandestinas, armas, rádios comunicadores e internet via satélite. Nos últimos meses, agentes federais destruíram pistas, aviões e apreenderam armas e equipamentos de rádio usados pelos garimpeiros que ameaçam a sobrevivência de milhares de indígenas.
A terra yanomami foi homologada em 1992 e é a maior reserva indígena do Brasil — com 94 mil quilômetros quadrados. A estimativa é de que ela abrigue 27 mil indígenas. A região é cobiçada por garimpeiros de todo o país, desde os anos 1980, em busca de minérios como ouro e cassiterita, usada na fabricação do estanho. As estimativas do governo são de que haja entre 3 mil e 3,5 mil garimpeiros ilegais na região. Entidades que atuam na defesa dos direitos indígenas afirmam que esse número pode chegar a 20 mil.
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Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam que o desmatamento na terra indígena yanomami aumentou 516% no período entre 2019 e 2020 na comparação com o período anterior, entre 2017 e 2018. Nos últimos dois anos, foram desmatados 39,1 quilômetros quadrados, o equivalente a 3,9 mil campos de futebol. No período anterior, o desmatamento foi de 6,34 quilômetros quadrados.
Para chegar à região onde estão os garimpos, os dois principais meios são os rios ou os céus. Garimpeiros desafiam as corredeiras dos rios que cortam a região para chegar às áreas exploradas irregularmente.
Normalmente, esse transporte é feito em lanchas de alumínio rudimentares chamadas de "voadeiras". Nessas embarcações são transportadas pessoas, alimentos e equipamentos usados na extração do ouro.
Além das voadeiras, os garimpeiros também usam pequenas estradas vicinais e uma intrincada malha aérea.
Na sua maior parte, ela é composta por voos e pistas de pouso clandestinos que transportam pessoas e suprimentos, mas que também é utilizada para escoar a produção de ouro ilegal para fora dos garimpos.
A rota do combustível
O ciclo de ações contra o garimpo ilegal na região foi batizado de Operação Xapiri. Ela é resultado de um processo movido pelo Ministério Público Federal (MPF) em Roraima contra o garimpo ilegal na região e envolve órgãos como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Agência Nacional do Petróleo (ANP), a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), Polícia Federal e Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
Diante da sua importância estratégica, os agentes começaram a atuar para paralisar a estrutura aérea dos garimpos. Desde o início das investigações sobre a malha aérea clandestina que dá apoio aos garimpos na região, um dos principais "mistérios" era descobrir a origem do combustível de aviação que alimentava essa frota.
Os agentes, então, cruzaram informações contidas em notas fiscais e outros documentos e chegaram à filial de Boa Vista da Pioneiro Combustíveis, uma das maiores distribuidoras de combustível de aviação do Brasil, com 24 unidades nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste.
A empresa é apontada como a principal fornecedora de combustível de aviação para a estrutura aérea que dá suporte ao garimpo ilegal na terra indígena yanomami.
Pelas normas da ANP, distribuidoras de combustível de aviação só podem vender o produto para postos de abastecimento devidamente licenciados ou para aeronaves que tenham o certificado de aeronavegabilidade da Anac dentro do prazo de validade.
O certificado é uma espécie de "autorização" para que a aeronave possa voar. As exigências, quando cumpridas, facilitam o rastreio do combustível.
Os documentos da empresa, segundo a investigação, apontam que ela vendeu pelo menos 860 mil litros de combustível de aviação de forma irregular. O valor é mais da metade do 1,5 milhão de litros de gasolina e querosene de aviação comercializados pela Pioneiro em Roraima.
Até chegar aos garimpos, no entanto, o produto faz uma viagem de quase 4,6 mil quilômetros, saindo de Cubatão, em São Paulo, até chegar a Boa Vista.
O combustível é produzido pela Petrobras, que o então revende para a Vibra Energia, novo nome da antiga BR Distribuidora, uma ex-subsidiária da Petrobras privatizada em 2019.
A Petrobras foi procurada pela reportagem e enviou uma nota afirmando que a Pioneiro Combustíveis não é sua cliente.
"A Pioneiro Combustíveis não é cliente de combustíveis de aviação da Petrobras. A empresa adquire o produto das distribuidoras de combustíveis de aviação", diz a nota da estatal.
A Vibra Energia também foi procurada pela reportagem, mas até o momento da publicação deste artigo, ela não havia se manifestado.
Em nota, a ANP informou que a Pioneiro Combustíveis foi autuada por descumprimento da norma que regula a venda de combustível de aviação e que o caso ainda está em tramitação, mas que ela se encontra em situação regular e autorizada a continuar vendendo o produto. Se for considerada culpada ao fim do processo, a empresa poderá ser alvo de multas entre R$ 5 mil e R$ 5 milhões.
A BBC News Brasil contactou a advogada da Pioneiro Combustíveis e enviou perguntas sobre as conclusões preliminares da investigação. Por mensagem de texto, a advogada da empresa, Janaina Sousa Lopes, disse que a empresa "tem mais de 30 anos no mercado e não compactua com qualquer suposta irregularidade".
Distribuição do combustível
Depois de chegar aos tanques da Pioneiro Combustíveis, parte do produto era, segundo as investigações, vendido de forma irregular para pontos de abastecimento localizados em áreas próximas à terra indígena. Nesses locais, aviões que voavam para os garimpos seriam abastecidos clandestinamente.
Em um dos casos, os agentes descobriram que uma empresa que opera um desses pontos de abastecimento comprou 40 mil litros de combustível de aviação. Em uma das fases da operação, os agentes chegaram a apreender sete aeronaves no local.
Dias depois, duas dessas aeronaves foram encontradas e destruídas pelo Ibama em uma pista de pouso clandestina próxima à terra indígena yanomami.
Em outra situação, documentos da Pioneiro mostram que ela entregou 39 mil litros de combustível em novembro para um aeródromo que havia sido embargado pelo Ibama em outubro, o que o proibia de receber o produto.
De acordo com as investigações, a empresa não poderia alegar desconhecimento sobre o destino do produto porque o combustível foi entregue pelos próprios caminhões da Pioneiro.
Outra parte do combustível, ainda de acordo com os documentos, era colocada diretamente no tanque de aeronaves sem autorização para voar.
Segundo dados fornecidos pela própria empresa, ao menos quatro aeronaves sem autorização da Anac para voar foram abastecidas com pelo menos 4 mil litros de combustível. Na região, aeronaves sem autorização de voo realizam os chamados "voo fantasmas", que fogem de qualquer tipo de fiscalização.
Os agentes encontraram, ainda, pelo menos uma aeronave estrangeira sem autorização de voo dada pela ANAC que recebeu combustível da Pioneiro e que foi flagrada em pistas clandestinas que operam próximo a garimpos.
No dia 13 de dezembro, o Ibama multou a Pioneiro Combustíveis em R$ 1,5 milhão pelo transporte e comercialização de gasolina e querosene de aviação de forma irregular. Além da multa, a empresa teve suas atividades suspensas.
No dia 21 de dezembro, no entanto, a Justiça Federal de Roraima concedeu uma liminar suspendendo a multa e a paralisação das atividades da empresa sob o argumento de que ela poderia afetar atividades essenciais como o abastecimento de aeronaves que fazem o serviço de atendimento médico na região.
Pistas, armas, rádio e internet
Com o fornecimento de combustível garantido, os garimpeiros montaram uma ampla e bem conectada rede de pistas de pouso clandestinas, que incluía até hangares improvisados no meio da selva.
Em um desses pontos, localizado a pouco mais de cinco quilômetros do limite da terra indígena yanomami, agentes do Ibama encontraram um casarão às margens de uma pista clandestina que servia de abrigo para aeronaves e helicópteros que operam no garimpo.
No local, os agentes também encontraram armas com mira telescópica, pistolas, munições de diversos calibres, equipamentos de rádio de telecomunicação e internet via satélite.
As armas, de acordo com os integrantes da operação, servem para fazer a segurança do local contra assaltantes ou grupos rivais.
Os rádios são usados para a comunicação entre as pistas e as aeronaves e a internet via satélite ajuda os garimpeiros a romper o isolamento e a se comunicarem uns com os outros quando são desencadeadas operações de combate à atividade.
Diversas tentativas de fuga durante a Operação Xapiri foram registradas pelos agentes. Em uma delas, um helicóptero decolou de uma pista clandestina no momento em que o helicóptero do Ibama chegou ao local.
Dados preliminares indicam que pelo menos 277 pistas de pouso clandestinas foram identificadas nos arredores da terra indígena yanomami.
Mistério resolvido
Para o procurador da República Alisson Marugal, as informações preliminares repassadas pelo Ibama foram úteis para resolver parte do que ele classificava como "mistério".
"Para nós, sempre foi um mistério saber de onde vinha a enorme quantidade de combustível que abastecia as aeronaves que dão suporte ao garimpo na região. O que as informações mostram é que boa parte desse combustível chega a Roraima de forma legal e depois é repassada para essa rede que abastece os garimpos", afirmou o procurador.
Marugal explica que, a partir das informações repassadas pelo Ibama, o MPF deverá atuar tanto na direção criminal quanto na de responsabilidade civil.
"Temos que avaliar, do ponto de vista criminal, todas as responsabilidades dos envolvidos. E na esfera civil, nós vamos verificar se cabe propor alterações no sistema de monitoramento da venda de combustível de aviação para evitar que o produto abasteça atividades criminosas", explicou.
Além da investigação sobre a rede logística que dá apoio ao garimpo, o MPF em Roraima e em outros Estados também apura outros ramos dessa atividade, como o escoamento da produção, o "esquentamento" do ouro ilegal e a sua introdução no mercado legal do metal. Essas investigações se concentram em Estados como Roraima, Rondônia, Pará e Mato Grosso.
Um estudo elaborado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) divulgado neste ano indica que 28% de todo ouro comercializado no Brasil entre 2019 e 2020 tinha evidências de irregularidades. Isso equivale a 49 das 174 toneladas de ouro registradas no país no período. Estima-se que a maior parte do ouro ilegal do Brasil seja oriundo de garimpos na Amazônia.
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