Caso KISS

Boate Kiss: réus ficam livres mesmo após a condenação

Réus pegam até 22 anos e 6 meses de prisão em regime fechado, mas são favorecidos por habeas corpus ao fim do julgamento

Após 10 dias de julgamento, o Tribunal do Júri de Porto Alegre condenou, ontem, os quatro réus acusados do incêndio da Boate Kiss, que deixou 242 mortos e 636 feridos na tragédia, ocorrida em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em janeiro de 2013. Mas eles não saíram da sala de audiências para cumprirem a pena em regime fechado, como pretendia o juiz Orlando Faccini Neto: ao fim da leitura das sentenças, o magistrado recebeu um habeas corpus preventivo, concedido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a um dos réus, que garantiu a todos a liberdade provisória.

Os sócios da boate levaram as maiores penas: Elissandro Spohr foi condenado a 22 anos e seis meses de prisão, e Mauro Hoffmann pegou 19 anos e seis meses. Já o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o assistente de palco da banda, Luciano Bonilha Leão, foram condenados a 18 anos.

O juiz pediu a prisão imediata, sem algemas, para que os réus "fossem conduzidos com toda a dignidade" para a prisão. Mas, para cumprirem a pena, a Câmara Criminal precisará apreciar o mérito do habeas corpus. Como não há data prevista para isso, até lá os condenados estão em liberdade.

O julgamento, o mais longo da história do Judiciário gaúcho, durou 10 dias. O uso do artefato pirotécnico em espaço fechado, a lotação da casa e a colocação da espuma que liberou gases tóxicos são os pontos principais que, segundo a Promotoria, configurariam o crime de homicídio e tentativa de homicídio com dolo eventual. Os quatro foram condenados por homicídio simples com dolo eventual.

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Emoção

Os 10 dias de julgamento foram marcados por relatos fortes. No primeiro dia, Kellen Giovana Leite Ferreira deu seu depoimento na condição de sobrevivente da tragédia. Com 18% do corpo queimado e um pé amputado, fez questão de mostrar a prótese que usa hoje.

"Eu me atinei a correr. Achei que fosse briga. Quando eu cheguei na porta, caí. Nesse momento, senti meus braços queimarem, muito calor e um cheiro muito forte", recordou Kellen.

Outro depoimento marcado pela emoção foi o do sobrevivente Delvani Brondani Rossi, 29 anos, que se manifestou no quinto dia de julgamento. "Fui caindo e me despedindo da minha família, dos meus amigos e pedindo perdão por alguma coisa que tivesse feito. E eu caí no chão, estava sentido me queimar, fui me debruçando, colocando as mãos no rosto e desmaiei", relatou.

Um dos depoimentos mais esperados era o do ex-prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, ouvido no oitavo dia e que negou a responsabilidade da prefeitura na tragédia: "Não fiz nada, absolutamente nada que pudesse comprometer a mim. Nenhum servidor da prefeitura agiu de tal forma que tenha contribuído para o que aconteceu naquela noite, que foi um incêndio com vítimas fatais. Lastimo tudo que ocorreu. Até hoje isso me entristece muito", disse, deixando indignados parentes das vítimas e sobreviventes.

No mesmo dia, um dos réus, Marcelo de Jesus dos Santos — que manuseava o artefato quando o fogo começou — disse que teve uma chance de apagar o incêndio ao receber um extintor de incêndio: "Tive uma chance só de apagar o fogo. E vendo aquele desespero, as pessoas correndo, querendo sair. E eu olhava e não podia fazer nada", afirmou.

Outro réu, Luciano Bonilha, admitiu ter comprado e colocado o artefato nas mãos de Marcelo, mas disse que não sabia que não podia ser usado em um ambiente fechado: "Mesmo sabendo que eu sou inocente, se para tirar a dor dos pais, eu estou pronto, me condene", disse.

Já o sócio da boate Elissandro Spohr chorou ao lembrar-se da tragédia: "Querem me prender, me prendam. Estou cansado. Perdi um monte de amigos, eu perdi funcionário. Vocês acham que eu não tinha amigo lá? Não é fácil", disse.

O outro sócio, Mauro Hofmann, disse que era apenas investidor da casa noturna: "Eu não ia precisar me envolver, ir lá abrir a casa. Não ia contratar ninguém, contratar banda. Nada", justificou.

Parentes das vítimas: fim da impunidade

Minutos depois da leitura das sentenças, o presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Flávio Silva, ressaltou que se colocou fim à impunidade do caso.

"Prova que a nossa luta foi valorizada, e que ela tinha, realmente, sentido. Foram longos anos de busca por justiça pelo assassinato dos nossos filhos. Valeu a pena, porque a gente vai proteger muitas vidas daqui por diante", disse.

Silva ainda desabafou sobre o desgaste da espera de quase nove anos. "Foi muito difícil acompanhar tudo de perto. Teve momentos que eu cheguei a pensar: 'tenho que estar firme, tenho que estar vivo para acompanhar o desfecho dessa história'. Porque esse problema que agravou a minha saúde tem nome e tem endereço", acusou.

O cansaço físico e mental também é abateu Vanessa Vasconcellos, que perdeu a irmã, Letícia, ex-funcionária da boate, na tragédia. "A gente reviveu todos aqueles dias. Fiz muita terapia para tentar esquecer e veio totalmente à tona", explicou.

Dentre os momentos que considerou mais cruéis, Vanessa destaca quando um dos réus, Elissandro Spohr, dono da boate, mencionou o nome dela. "Eu via que era uma estratégia dele para se vitimizar atacando uma irmã de vítima. Isso para mim foi um absurdo, me fez muito mal", desabafou.

Flávio Silva considerou a defesa dos acusados apelativa — em um dos dias do julgamento, uma das advogadas de defesa chegou a colocar para que todos ouvissem uma suposta mensagem psicografada de um dos jovens que morreram na tragédia. Ele disse que se preparou por dois anos para o testemunho.

Reação ao HC

Sobre o fato de que os quatro réus saíram do Foro Central de Porto Alegre em liberdade, apesar da condenação, Silva disse que já era esperado. "Seja hoje, ou amanhã, ou daqui um mês, eles terão as prisões decretadas e irão cumprir a pena em regime fechado", afirmou. É o que também destacou Vanessa. "Por mais que hoje eles estejam livres, isso prova que a gente está certo", salientou, acrescentando que ver a justiça sendo feita é um "conforto".

Para os próximos dias, o presidente da Associação disse que irá se afastar um pouco do tema para retornar à luta. "É preciso retomar o fôlego, porque a luta não termina aqui, hoje (ontem)", garantiu.

Em Santa Maria, cidade onde ocorreu a tragédia, na Tenda da Vigília, erguida na Praça Saldanha Marinho, os momentos finais do júri foram reproduzidos em um telão. Centenas de membros da comunidade acompanharam o veredito dado pelo juiz. Houve silêncio, mas também foram ouvidos aplausos diante do resultado. 

*Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi