Tragédia

Família de operário morto na Refinaria Abreu e Lima clama por justiça

Advogado que defende parentes de Audo da Hora, que morreu em um acidente, quer transformar o caso em um marco do direito brasileiro

Uma dor que só aumenta e uma luta que está apenas começando. Dois meses após a morte do instrumentista Audo Alves da Hora, 38, num acidente na Refinaria Abreu e Lima (Rnest), em Ipojuca, a família dele busca justiça enquanto enfrenta dificuldades financeiras e emocionais. Audo, que trabalhava há oito meses numa empresa terceirizada, morreu ao ser atingido por um jato de ar comprimido quando consertava uma torre de tratamento que não deveria estar pressurizada. O trabalhador teve seu corpo arremessado, sofreu politraumatismos e ficou com o rosto desfigurado.

Casado e pai de duas filhas, uma delas com síndrome de Down, ele era o sustentáculo da família, que alega estar desamparada pela Petrobras e pela QWS, companhia com a qual Audo tinha vínculo direto. Os parentes estão processando as empresas por danos materiais e morais. O escritório de advocacia responsável busca transformar o caso num marco no direito brasileiro, onde as indenizações por acidentes de trabalho ainda são baixas em comparação aos Estados Unidos, por exemplo.

A perda de Audo chocou a cidade de Chã de Alegria, a 54km do Recife, onde ele vivia. No dia de seu enterro, que foi acompanhado por cerca de 500 pessoas, o comércio fechou. “Audo era caçula de 13 irmãos e era um filho para mim. Tudo que fazia era para ajudar sua família. Quero justiça porque a Petrobras tem que entender que está trabalhando com vidas, não com robôs”, diz a irmã dele, a microempresária Maria da Hora.

Ela destaca que o sofrimento da família foi agravado pelas informações desencontradas no dia do acidente, 27 de setembro. Segundo Maria, os parentes não receberam notícias das empresas e ficaram à mercê de grupos de WhatsApp. “A esposa de Audo, Mônica, passou mal ao saber do acidente e foi atendida num posto de saúde. Lá, recebeu a informação de que ele havia sido reanimado. Rezou e agradeceu a Deus, mas quando chegou em casa, soube da verdade”, conta.

O Sindipetro denuncia que más condições de trabalho estariam custando vidas nas instalações da Petrobras. Somente em setembro, três petroleiros morreram num intervalo de 48 horas. Dois outros operários faleceram na Bacia de Campos (RJ).

Em 25 de setembro, Erick Gois, 26, participava de um treinamento quando foi atingido por um cabo. No dia seguinte, André Pereira, 48, morreu de Covid-19. Com sintomas graves, ele foi retirado da plataforma direto para a UTI.

Coordenador do sindicato, Rogério Almeida alerta para a insuficiência de investimentos em segurança. “A empresa está priorizando somente os lucros. Há constantes acidentes e falta treinamento. Há muita pressão para resolver as coisas rapidamente”, explica. Segundo ele, as condições têm sido mais difíceis para os terceirizados - 65% da força de trabalho atual da Petrobras. Audo recebia R$ 2 mil para desempenhar funções de risco. “Essas pessoas estão ganhando pouco, cheias de dívidas, e não estão trabalhando no seu ‘melhor eu’”, acrescenta Almeida.

Em nota, a Petrobras afirma que prestou o apoio devido aos familiares de Audo e acompanhou o caso junto à QWS. “Não procedem afirmações sobre precarização. A Rnest opera de acordo com as normas de segurança e cumpre rigorosamente a legislação trabalhista. A Petrobras tem como um de seus valores fundamentais o respeito à vida, às pessoas e ao meio ambiente”, diz o comunicado.

“A Petrobras promove a busca pela excelência em saúde e segurança e realizou este ano uma parada programada para manutenção da Rnest. Com um investimento de aproximadamente R$ 300 milhões, cerca de três mil pessoas atuaram em inspeções e manutenção de praticamente todos os equipamentos da unidade, tais como compressores, motores, vasos, permutadores de calor, válvulas, reatores e outros”, conclui a nota. A QWS ainda não respondeu os questionamentos da reportagem.

Punitive Damages

Especialista em processos indenizatórios voltados a vítimas de diferentes tipos de acidentes, o advogado Eduardo Lemos quer aplicar o conceito de punitive damages (danos punitivos) ao caso de Audo da Hora. A doutrina prega indenizações milionárias para evitar que empresas repitam falhas graves que provoquem tragédias.

O conceito já é adotado no direito anglo-saxão, quando acontece uma situação muito grave e evitável, que não era imprevisível. “No Brasil, o nível das indenizações têm melhorado, mas, via de regra, os valores ainda são baixos”, diz. Ele acrescenta que o objetivo é mostrar às empresas que vale mais a pena investir em segurança do que pagar indenizações altíssimas. “Tomar providências e ser zeloso custa caro, mas não se pode achar que o investimento não compensa. É por isso que acontece muito acidente de trabalho no Brasil”, raciocina.

Lemos e sua equipe acionaram judicialmente e Petrobras e a QWS. O processo corre em segredo de Justiça na 1ª Vara de Ipojuca. O advogado não pode falar em valores específicos, mas espera que o acidente crie jurisprudência.

Lemos defendeu 13 famílias de vítimas do acidente com o voo 3054 da TAM, ocorrido em São Paulo, em 2007; e quatro famílias de pessoas que morreram na queda do voo 447 da Air France, na costa brasileira, em 2009. Ele também afirma ter atendido familiares de vítimas do desastre com o avião que transportava a equipe da Chapecoense, na Colômbia, em 2016, e parentes de vítimas do acidente no qual morreram o ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, e outras quatro pessoas em 2017.

"Nosso objetivo é obter indenização para todos os irmãos de Audo, o pai, a mãe, a esposa e as duas filhas. É o chamado dano moral ricochete, voltado a atender pessoas que têm vínculo afetivo", explica. “Atuei em mais de 100 casos e nunca vi uma família tão unida. Eles se reuniam duas vezes por semana. Cada um perdeu um pedaço de si”, lamenta. "A QWS e a Petrobras não ajudaram. Não prestaram auxílio emocional nem material. Não se sensibilizaram.” Entre 2002 e 2020, segundo o Ministério Público do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho, 21.467 trabalhadores e trabalhadoras morreram de acidentes no Brasil.

Entrevista >> Maria da Hora, irmã de Audo

Quem era Audo, com quem você conviveu por 38 anos?

Meu irmão era o caçula de uma família de 13 filhos. Ele era sete anos mais jovem que eu e era como se fosse meu filho. Sempre foi um jovem muito comedido, responsável com dinheiro. Tudo que fazia era para ajudar sua família. Era muito talentoso e curioso. Construiu sua casa sozinho. Tudo que tem na casa foi ele que fez. Além de operário da refinaria, sabia trabalhar como pedreiro, eletricista e marceneiro. Nos períodos em que estava desempregado, fazia trabalhos ocasionais e cursos para se capacitar.

Também gostava muito de cavalos e sonhava ser dono de um rancho quando se aposentasse. Em 2002, todos nós, irmãos e irmãs, viemos morar no Recife, menos ele, que continuou em Chã de Alegria, na companhia de nossos pais. Ele também tinha paixão por cavalo. Anos atrás, comprou um carro para trazer sua filha Sofia ao Imip, duas vezes por semana, para fazer terapia ligada à síndrome de Down. Quando o tratamento acabou, vendeu o carro e comprou um cavalo. Seu sonho era ter um rancho. Estava sempre nas vaquejadas e cavalgadas. Agora não conseguimos mais nem ouvir música de vaquejada.

Como ele começou a trabalhar no ramo de petróleo?

Quando Audo tinha 19 anos, ele e sua esposa, Mônica, tiveram o primeiro filho, que morreu de embolia com um dia e meio de vida. Ali ele percebeu que tinha a responsabilidade de sustentar sua família. Começou a procurar trabalho, mas em Chã de Alegria só havia a Prefeitura ou o setor da cana de açúcar. Começou a ficar inquieto. Ele era sustentado pelos pais e não gostava. Então surgiu a oportunidade de trabalhar para uma terceirizada da Petrobras em Linhares, no Espírito Santo. Juntou dinheiro e chamou a esposa e a filha mais velha, atualmente com 16 anos, que já era nascida.

A família passou quatro anos no Espírito Santo. Audo foi demitido e terminou voltando para Chã em 2012. Usou a indenização e dinheiro de bicos para construir sua casa. Arrumou um emprego em outra terceirizada da Petrobras, como eletricista. Alugou um apartamento no Cabo, junto com colegas, e ia para Chã de Alegria aos fins de semana. O salário era bom e ele tinha plano de saúde. Em 2014 a empresa fechou e ele perdeu esse emprego.

Em janeiro de 2021, assinou o contrato com a QWS. Ele disse que a função era meio perigosa, mas tinha que ganhar o pão de cada dia. Ele passava a semana em um alojamento com colegas e os fins de semana em casa. Às vezes dormia aqui na minha casa, na Iputinga (Recife), indo ou voltando para Chã. Para fazer o trajeto, ele comprou um carro junto com um colega da mesma firma. Cada um pagava 600 reais por mês de prestação. Normalmente, eles saíam de Chã umas 4h30, 5h, para estar na empresa às 7h30.

O que a família sabe sobre o acidente?

Audo voltou do almoço naquele dia (27 de setembro) e estava fazendo manutenção de uma válvula que separa o diesel de alguns componentes. Essas válvulas deviam estar sem pressão, mas a peça que mandava a pressão para a atmosfera não estava lá. Audo levou uma pancada de 400 quilos de ar comprimido no abdomen e foi arremessado a uma distância entre 5 e 15 metros. Morreu por politraumatismo. Foi tão rápido que acredito que eu acho que até o espírito dele ficou sem entender. Danificou todos os órgãos vitais. Quando chegou o socorro, já estava sem pulso.

O acidente foi às 15h20, mas só soubemos às 17h. Um dos meus irmãos recebeu informações desencontradas da empresa e mandou todos irem pra Chã, sem dar detalhes. Eu achei que tivesse acontecido algo com meu pai. Tinha muita coisa circulando no "zap". Às 18h10 soubemos da morte do meu irmão, por uma vizinha da minha mãe. Só às 21h ou 22h soubemos que o corpo do dele (que foi retirado do local do acidente às 19h) estava no IML do Recife. Mas tudo vazava em grupos de WhatApp de Chã de Alegria antes mesmo da família saber.

Mônica teve que ser socorrida para tomar soro. No posto, recebeu a notícia desencontrada, pelo WhatsApp, que o marido tinha sido reanimado e estava vivo. Agradeceu a Deus. Quando chegou em casa, soube que ele realmente estava morto. Além do luto, ela agora tem que lidar com uma situação financeira difícil, pois Audo era o provedor da família. Colegas e familiares fizeram uma vaquinha que ajudou a tratar dos muitos trâmites pós-morte. A empresa deu a indenização relativa aos oito meses de serviço. A gente deu entrada em pensão morte, no INSS, que ainda não saiu.

Como estão suas sobrinhas e seus pais?

Grande parte dos esforços de Audo na sua vida profissional visava dar um futuro melhor para a filha Sofia, que tem Down. "Minha preta, foi uma luz que Deus te colocou na minha vida. Tudo que faço por você eu faria dez vezes", dizia ele. A menina tem 8 anos e até hoje não conseguiu um pediatra pelo SUS. Não consegue falar uma frase completa. Não tem fonoaudiólogo nem terapia de psicomotricidade. Tem poucas habilidades. Ela é esperta por conta do convívio, mas, na idade em que está, deveria ser muito mais desenvolvida.

Ela está fazendo fonoaudiólogo com o dinheiro que a família recebeu de indenização por tempo de serviço após a morte de Audo, mas o dinheiro vai acabar. Ela precisa tomar remédios e tem alimentação restrita. Depois que Audo morreu, Sofia diz que “Papai virou uma estrelinha, tá no céu.” Também diz que o pai está trabalhando. Ela ainda está digerindo a situação. Já Maria Eduarda, a mais velha, é meio calada, feito o pai. Tem um coração enorme, uma tranquilidade invejável. Mas gente tem percebido que ela está mais fechada e não se expressa muito desde que o pai morreu.

Meus pais também estão sofrendo tremendamente. Minha mãe (Iracema, 73), entrou em depressão. Acorda de madrugada e não para de falar nele. Vai para o portão esperar por ele. Audo morava próximo da casa dela. Chegava lá, assobiava e ficava se escondendo. Minha mãe dizia. “Apareça, Audo, sei que és tu.” Agora, ela não consegue mais nem ouvir um assobio.

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