"Jamais teria uma filha do nível dela." Foi o que disse Cláudio Gastão da Rosa Filho, advogado do empresário André Camargo Aranha, ao se referir à jovem Mariana Ferrer, que denunciou ter sido dopada e estuprada durante uma festa no qual ela estava trabalhando em um beach club em Florianópolis, em Santa Catarina, em 2018. Durante o julgamento no ano passado, a defesa do réu ainda fez menções à vida pessoal de Mariana. O juiz Rudson Marcos em nada interferiu.
O país ficou escandalizado com a audiência que escancarava a violência institucionalizada e a revitimização da jovem.
E foi pensando nisso que foi formulado o Projeto de Lei Mariana Ferrer, que virou lei ontem (24/11). A Lei 14.245 prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos.
O Estado de Minas conversou com Fernanda de Avila e Silva, advogada feminista e militante pelos direitos das mulheres, sócia-fundadora do projeto Me Conta Direito, e Camila Rufato Duarte, advogada, ativista da causa feminista e cofundadora do Direito Dela, para discutir os principais mudanças e a importância da nova lei.
Confira as entrevistas:
O que muda no julgamento de processos de estupro com a nova lei?
Camila Rufato: "A grande mudança trazida é a coibição de quaisquer atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas em todos os tipos de julgamentos. No Art. 400-A da lei está prevista a proteção nas audiências de instrução e julgamento, com atenção especial às que apurem crimes contra a dignidade sexual."
Fernanda de Avila: "Em qualquer julgamento, todas as partes precisam ser tratadas com respeito e diligência. Isso vale para absolutamente todos os envolvidos. Mas a gente sabe que a violência institucional é uma realidade dentro do Judiciário brasileiro. (...) A audiência do caso Mariana Ferrer, que vazou na mídia, mostrou, para todos que assistiram, uma realidade que faz parte da advocacia feminista, algo que enfrentamos cotidianamente e, felizmente, essa lei vem para definitivamente coibir esse tipo de situação.
A proteção da nova lei não é direcionada apenas aos casos de violência sexual, mas ela confere uma relevância especial para esses casos, já que aumentou de um terço até a metade a pena do crime de coação no curso do processo, quando o processo envolver qualquer crime contra a dignidade sexual - isso inclui importunação sexual, assédio sexual, estupro, estupro de vulnerável, violação sexual mediante fraude e outros - e destacou a mesma questão nos cuidados que precisam ser tomados durante as audiências de instrução e julgamento."
Isso apenas vale no momento da audiência?
Fernanda de Avila: "As regras processuais da nova lei valem para audiências criminais. Ou seja, a questão das manifestações inapropriadas, utilização de linguagem que não atente contra a honra da vítima, informações e materiais que não ofendam vítimas e testemunhas, tudo isso tem está relacionado à audiências do âmbito penal.
Mas a questão do crime de coação no curso do processo não. Esse crime já existia antes. No entanto, se ele acontecer em casos de violência sexual agora recebe uma pena mais grave. Ou seja, usar violência ou grave ameaça contra qualquer pessoa envolvida no processo (testemunha, autor, réu, advogado) buscando obter algum tipo de favorecimento pessoal ou tentado favorecer alguém, configura esse crime, desde que já exista um processo instaurado. E se o processo estiver relacionado a qualquer tipo de violência sexual, o crime agora terá a pena aumentada."
Como evidenciar provas?
Camila Rufato: "É essencial pensar sempre em como produzir provas, pois é assim que conseguimos consubstanciar nossos direitos. Todo o processo judicial é documentado. Das audiências são feitas atas, no entanto nas atas não constam, na maioria das vezes, o detalhamento suficiente para que seja evidenciada a prática do crime em comento. Assim, é essencial que o(a) advogado(a) da parte que for vítima de alguma das formas de violência previstas na Lei nº 14.245/21 interfira e peça para que o escrivão conste em ata aquele ato atentatório contra a dignidade da vítima ou da testemunha, a partir de agora fundamentando esta solicitação com a Lei Mariana Ferrer.
Para além da ata, as audiências virtuais podem ser gravadas na tela do computador, o que facilita todo este processo. No caso das audiências presenciais o(a) advogado(a) pode solicitar a gravação da mesma justamente para resguardar sua cliente de eventual desrespeito. No entanto, é importante aqui ressalvar que, especialmente em casos delicados e que correm em segredo de justiça, a gravação deve ser realizada com a cautela necessária para que não afronte o direito à intimidade da parte."
Quem deve zelar pela integridade física e psicológica da vítima?
Camila Rufato: "Todas as partes e sujeitos processuais presentes no ato processual, ou seja: juízes, advogados, membro do ministério público, defensores públicos, testemunhas, todos podem ser responsabilizados civil, penal e administrativamente."
O que a nova lei simboliza para a luta das mulheres?
Fernanda de Avila: "É um marco na luta contra a violência institucional. O caso Mariana Ferrer escancarou a existência desse tipo de prática. O Judiciário precisa ser um ambiente de acolhimento e escuta e não de humilhações e desestímulo a denúncias. Eu acredito que tanto a Lei Mariana Ferrer como o Protocolo de Julgamento com perspectiva de gênero lançado pelo Conselho Nacional de Justiça, no dia 19 de outubro de 2021, surgem para comprovar que violência institucional existe sim, afinal se não existisse ninguém se mobilizaria dentro do legislativo e do próprio judiciário para combatê-la.
Eu realmente espero que represente uma mudança de paradigma. É uma vitória para as mulheres, um grande avanço perceber que os olhos estão voltados para o problema da violência institucional e que algo está sendo feito. Agora resta esperar a aplicação efetiva, tanto da lei como do protocolo."
Camila Rufato: "A lei é uma conquista incontestável, sobretudo para as mulheres, pois embora a legislação estabeleça proteção a todas as vítimas e testemunhas, sem distinção de gênero, a realidade é que, na prática, quem mais sofre atos atentatórios contra a honra são as mulheres, uma vez que a nossa sociedade ainda replica a lógica da "mulher honesta", outrora prevista na legislação, o que leva a uma consequência machista que elenca mulheres que mereceram ou não o mal a elas infligido, corroborada pelo estereótipo da mulher enquanto um ser perverso e traiçoeiro que deve sempre ter a palavra questionada, pois pode estar se utilizando daquela situação em benefício próprio ou com o intuito de vingança.
Na maioria das vezes estas duas situações são usadas como argumentos explícitos ou implícitos para violentar e silenciar as mulheres no judiciário. A nova lei traz um freio para essas condutas que revitimizam as mulheres e é um feliz indicativo que as questões de gênero estão sendo colocadas em pauta e o machismo estrutural punido."