Santa Maria (RS) — As chamas que destruíram a Boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, mudaram para sempre o destino das cerca de 1.300 pessoas que participavam de uma festa universitária na madrugada de 27 de janeiro de 2013. A casa noturna tinha capacidade para 690 pessoas. Mas, naquela noite, estava superlotada, com um público quase duas vezes maior. Em questão de minutos, a Kiss transformou-se em um inferno, do qual muitos não conseguiram sair.
Passados quase nove anos, o Rio Grande do Sul e o país voltam a se deparar com a tragédia. O dia 1º de dezembro vem com a expectativa de um desfecho para o caso, aguardado pelos familiares das 242 vítimas e para os sobreviventes da tragédia. “É o último momento que a gente tem para gritar”, define Vanessa Vasconcellos, 32 anos. Ela é irmã de Letícia Vasconcellos, funcionária da Kiss. À época com 36 anos, Letícia não conseguiu escapar do incêndio.
O julgamento no Foro Central de Porto Alegre terá quatro réus e pode durar até 15 dias. Respondem às acusações os sócios da boate Elissandro Callegaro Spohr (Kiko) e Mauro Londero Hoffmann; e os músicos Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava naquela noite. Eles serão julgados por um Conselho de Sentença, no Tribunal do Júri. Os réus responderão por homicídio simples (242 vezes consumado — pelo número de mortos —, e 636 vezes tentado — pelo número de feridos).
O caso da Boate Kiss foi considerado a segunda maior tragédia no Brasil em número de vítimas em um incêndio. Teve o maior número de mortos nos últimos 50 anos. É, ainda, o terceiro maior desastre em casas noturnas no mundo. Em uma série de reportagens, o Correio reconstitui essa história dolorosa, que deixou profundas cicatrizes em centenas de pessoas e marcou o Brasil.
O incêndio
Em 26 de janeiro de 2013, a festa “Agromerados”, organizada por cursos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), reunia centenas de jovens na fila para entrar na Boate Kiss. “Era noite de casa cheia. O Kiko ainda comentou ‘pessoal, vamos pegar junto hoje, façam correria, atendam todo mundo o melhor possível, porque, no final da noite, a gente vai dar umas caixas de cerveja para os funcionários”, relembra Luismar da Rosa Model, 34, sobrevivente da tragédia. Ele trabalhava na boate naquela noite.
A banda Gurizada Fandangueira, que costumava se apresentar mensalmente na boate, tocava naquela noite. Por volta das 2h30 da madrugada do sábado, 27, um dos músicos acendeu um sinalizador de uso externo.
As faíscas lançadas pelo equipamento entraram em contato com a espuma de isolamento acústico. A reação foi instantânea. As chamas se alastraram com rapidez, por se tratar de espuma altamente inflamável. Em contato com o fogo, o produto liberava gases tóxicos, como o cianeto. Uma fumaça escura passou a dominar o ambiente, impedindo as pessoas de respirar e enxergar.
Gabriel Rovadoschi, 27, estava na boate com mais quatro amigos. Ele recorda que o primeiro sinal de que havia algo errado foi quando a música parou. “Lembro de ver as pessoas virarem a cabeça em direção ao palco. Começou um murmurinho, falando que era briga”. Bastaram alguns instantes para o tumulto começar: todos procuravam uma saída do local.
A boate tinha apenas um acesso, usado tanto para entrada quanto para saída. No meio do empurra-empurra, dezenas de pessoas buscaram os banheiros na tentativa de escapar do incêndio, e acabaram ficando presas. Para agravar a situação, os sistemas de ar condicionado e de exaustão propagavam rapidamente a fumaça tóxica em vez de dissipá-la. A perícia concluiu, na época, que os dutos de ar eram ineficientes e estavam parcialmente obstruídos por janelas basculantes, impedindo que parte da fumaça saísse para o ambiente externo.
Os extintores de incêndio estavam em número insuficiente e fora do prazo de validade. Não havia sinais luminosos que indicassem as saídas. Esse detalhe foi definitivo para que, no momento em que a luz se apagou por conta do incêndio, centenas de pessoas não fossem capazes de encontrar a saída.
A casa noturna também funcionava sem alvará, pois estava com o processo de renovação em andamento. O alvará da boate havia vencido em 10 de agosto de 2012.
Logo após a tragédia, os quatro acusados tiveram decretada a prisão preventiva. Quatro meses depois, passaram a responder ao processo em liberdade. Essa situação se mantém até hoje.
Para as famílias, a liberdade dos quatro acusados representa um descaso do poder público ao sofrimento nesses oito anos. “A falta que a minha irmã faz jamais será suprida. Mas eles precisam pagar pelo que fizeram, principalmente para que nenhum tipo de local vá novamente cogitar fazer algo fora das diretrizes”, defende Vanessa Vasconcellos.
Os sócios da boate, Elissandro e Mauro, e o vocalista do grupo, Marcelo, solicitaram a transferência de local do julgamento. Os advogados dos réus sustentaram que, caso o julgamento ocorresse em Santa Maria, haveria dúvidas quanto à parcialidade, por estarem na cidade em que ocorreu a tragédia.
Em 2020, a Justiça gaúcha autorizou a transferência de julgamento para Porto Alegre a três réus — Elissandro, Mauro e Marcelo. Luciano foi o único que não manifestou interesse na troca, mas o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul determinou que o produtor da banda se juntasse aos outros réus, em um julgamento único, na capital gaúcha.
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