É falso o vídeo que circula no TikTok afirmando que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) assinou um decreto permitindo que governadores, prefeitos e policiais militares sejam multados e presos caso “venham a prender ou perseguir ou agredir cidadão de bem no seu direito de ir e vir ou no seu direito de livre iniciativa de trabalho honesto”, referindo-se às medidas para conter a pandemia.
O autor da gravação tira de contexto a lei 14.132, de iniciativa do Congresso Nacional e sancionada por Bolsonaro em 31 de março de 2021. Diferentemente do que ele diz, a lei transforma em crime a prática do stalking, que é a perseguição reiterada de alguém em ambiente físico ou virtual.
A reportagem tentou contatar o responsável pelo perfil que postou a gravação, mas não obteve resposta até a publicação deste texto. A postagem foi considerada falsa porque usa informações inventadas.
Como verificamos?
O narrador do vídeo cita o “decreto 14.132”, que, na realidade, é o número da lei à qual ele se refere. Por uma busca simples no Google, a reportagem acessou o texto da lei no site da Imprensa Nacional, do governo federal. A partir desse documento, o Comprova classificou o conteúdo verificado como falso, já que o material não sustenta as alegações do vídeo.
A reportagem também tentou encontrar o autor do post original, mas não conseguiu. No entanto, foi localizada a postagem compartilhada no Instagram que aparece no vídeo, feita por uma apoiadora do presidente Jair Bolsonaro. Então, foi feito contato com o perfil que postou o vídeo no TikTok por mensagem direta e comentário aberto no post, mas ele não respondeu.
Por fim, a equipe entrevistou o advogado criminal Bruno Paiva para saber mais detalhes sobre a lei citada na gravação.
Verificação
A lei
Mencionada na postagem, a lei existe, mas seu conteúdo foi retirado de contexto para dizer que seria uma determinação de Bolsonaro contra governadores, prefeitos e policiais. A lei número 14.132 instituiu, na realidade, o crime de perseguição, conhecido como stalking (em inglês), e foi apresentada como projeto ainda em 2019, antes da pandemia.
A prática ilegal é definida como perseguição reiterada, por qualquer meio, como a internet — cyberstalking —, que ameaça a integridade física e psicológica de alguém, interferindo na liberdade e na privacidade da vítima. Portanto, não mantém relação com o que foi citado no vídeo que circula entre apoiadores do presidente nas redes sociais.
O documento foi sancionado por Bolsonaro, com publicação em 1º de abril de 2021, e acrescenta ao Código Penal o crime de perseguição, revogando o artigo 65, do decreto 3.688 de 3 de outubro de 1941, que descrevia a Lei das Contravenções Penais.
A pena para quem for condenado é de 6 meses a 2 anos de prisão, mas pode chegar a 3 anos com agravantes, como crimes contra mulheres, crianças e idosos. Antes, o crime não era tipificado e tinha como pena de 15 dias a dois meses, ou multa, quando enquadrado na infração de perturbação da tranquilidade alheia.
Segundo o advogado criminalista Bruno Paiva, o contexto do decreto levou em consideração que as mulheres são as maiores vítimas de perseguição na internet, que pode ou não se estender para a vida fora das redes sociais. Paiva diz ainda que apesar das estatísticas indicando quais são as vítimas recorrentes do stalking – majoritariamente mulheres –, a lei protege qualquer cidadão que seja alvo desse tipo de crime.
“Esse crime surge em um contexto que já vem de vários anos de crimes contra as mulheres, sobretudo de crimes que não chegam a se transformar em lesão corporal ou feminicídio. No entanto, atingem as mulheres muito mais, após términos de relacionamento, onde [homens] vão atrás tanto na forma física quanto na esfera virtual”, explica.
Constrangimento por meio de redes sociais e telefonemas no ambiente de trabalho podem caracterizar as ameaças que a lei coíbe, segundo o advogado.
Caso haja perseguição virtual, é possível fazer o registro em cartório por meio de uma ata notarial, em que um oficial vai atestar que aquele conteúdo de fato existiu, ainda que venha a ser apagado futuramente por quem cometeu o crime de perseguição.
“Se a ameaça acontecer presencialmente, de forma física, é interessante que seja registrado um boletim de ocorrência. Continuando a perseguição, que se procure a Defensoria Pública, um advogado ou uma delegacia, pedindo a investigação com as características da pessoa que está perseguindo”, detalha Paiva.
Autoria da lei
O projeto de lei foi apresentado pela senadora Leila Barros (PSB-DF), em agosto de 2019. Jogadora da seleção brasileira por 18 anos antes de entrar na política, Leila dedicou a aprovação do texto à radialista Verlinda Robles, obrigada a se mudar do Mato Grosso do Sul após sofrer stalking em 2018, e à jornalista Jaqueline Naujorks, que publicou o caso. “Quem já viveu o stalking na vida sabe o que isso significa”, disse a senadora.
De acordo com o site do Senado, o relator da matéria na Casa, Rodrigo Cunha (PSDB-AL), justificou a importância do projeto citando um dado da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2017, “que apontava o Brasil como o país com a quinta maior taxa de feminicídios por 100 mil mulheres em todo o mundo”. Ele também destacou que “76% dos feminicídios do país são cometidos por pessoas próximas à vítima”.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos que tenham viralizado sobre pandemia, políticas públicas do governo federal e eleições. O conteúdo checado aqui teve ao menos 44,7 mil interações até 18 de novembro.
Ao tirar de contexto a lei que tipifica o crime de stalking, o vídeo pode gerar confusão. E, por meio de informações falsas, pode colocar a população contra agentes estaduais e municipais, governadores e prefeitos e incentivar o descumprimento de eventuais medidas de restrição impostas para frear a covid-19.
A publicação segue a linha de Bolsonaro, que já chamou de tirano quem fechou estabelecimentos não essenciais por conta da pandemia.
O Comprova já checou outros conteúdos criticando medidas de restrição, como o vídeo que usava informações falsas para dizer que o lockdown foi inútil e o tuíte com frase de enviado da OMS retirada de contexto para sugerir que o órgão condena o fechamento.
Post viral semelhante foi verificado em abril pela agência Lupa e pelo Estadão Verifica.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
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