A perda de altitude, colisão contra torres de transmissão elétrica e queda em vale montanhoso do avião que matou a cantora Marília Mendonça e outras quatro pessoas, em Caratinga, no Vale do Rio Doce, poderia se repetir na aproximação de várias outras pistas mineiras. São construções situadas em locais com obstáculos, sem estrutura e cuidado ou em relevo que representam desafios a mais para os pilotos, sobretudo os que se encontram em pane ou outras dificuldades.
Dos 67 aeródromos públicos do estado cadastrados pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), pelo menos 35 (52%) figuram em uma lista de espaços que apresentam condições desfavoráveis. Desses, 29 nem sequer podem ser utilizados para pousos e decolagens sem a luz do dia, e outros oito chegaram a ponto tão crítico que a Anac interditou sua utilização. Essas estruturas foram delegadas da União aos estados, em meados de 2015, e em seguida a operação foi concedida aos municípios, a quem cabe administrá-las.
A reportagem do Estado de Minas chegou a essa listagem a partir de informações da Anac e depois de ouvir 10 pilotos membros de aeroclubes ou integrantes de escolas de voo das cidades de Belo Horizonte, Uberlândia, Juiz de Fora, Ipatinga, Lavras e Pará de Minas. Todos consideram que pousar no aeroporto de Ubaporanga, próximo a Caratinga – em direção ao qual o avião com a cantora fazia aproximação para pouso antes de cair a cerca de 4,5 quilômetros da pista –, requer atenção, mapeamento, conhecimento de condições prévias e experiência, situação que pode ser agravada por emergência.
O avião que levava Marília voava a baixa altitude e mergulhou no vale em 5 de novembro. As investigações estão a cargo da Polícia Civil, para possíveis responsabilizações civis e criminais, e do 3º Serviço Regional de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Seripa III) da FAB, para determinação das causas do acidente e melhorias do sistema de transporte aéreo. Ontem, a Aeronáutica informou que os motores do avião serão levados para Brasília e não mais para Goiânia, como havia sido noticiado antes. As outras partes dos destroços serão periciadas no Rio de Janeiro.
Condições de pane, dificuldades mecânicas ou problemas da tripulação seriam agravados, por exemplo, se um avião precisasse pousar no Aeroporto Juscelino Kubitschek, em Teófilo Otoni, na Região do Vale do Rio Mucuri. Sinalização da pista é considerada ruim, bem como sua disposição. São frequentes as queimadas que atingem a pista, bloqueando a visão dos pilotos com fumaça.
O aeródromo de Teófilo Otoni é um dos piores, ao lado do de Viçosa e de Caxambu, na concepção dos pilotos ouvidos pelo Estado de Minas . Os de Abaeté, Araguari, Conceição do Mato Dentro, Minas Novas, Paraguaçu, Turmalina e Unaí chegaram ao extremo de terem sido interditados até que adquiram, por meio de obras, equipamentos, licenças e documentação a capacidade de operar com segurança.
Fumaça
Um dos pontos colocados pelos pilotos ouvidos sobre Teófilo Otoni é o fato de ser um aeródromo em local mais montanhoso, que precisa ser muito bem estudado por profissionais que não o conhecem. É comum que a pista esteja com a sinalização e o asfalto deficientes e desgastados, com visibilidade prejudicada. Incêndios vindos do mato em área externa atingem a vegetação interna do aeródromo e a pista. Em julho, 544 metros de pista dos 1.190 existentes (46%) foram atingidos pelas chamas, que transformaram em cinzas 30 hectares (ha) do aeroporto, lançando fumaça e fuligem na área de pousos e decolagens. A 600 metros da cabeceira do aeroporto, outra área, de 5ha ardeu, bem como uma terceira, de 16ha, a 1,3 quilômetro da cabeceira.
“Nesse caso (de muita fumaça de incêndio na pista ou a bloqueando), caberá ao piloto decidir sobre a continuidade da operação ou não. O que o piloto deve evitar é ingressar com a aeronave dentro da nuvem de fumaça, pois, além de perder a visão do voo, poderá ocasionar uma perda de potência do motor, podendo até levar ao apagamento total”, observa o comandante Messias Alan de Magalhães, que é coronel da reserva da Polícia Militar, piloto com mais de 3 mil horas de voo, instrutor, examinador pela Anac e investigador de acidente aeronáutico pelo Cenipa.
Relevo e sinalização
Os outros dois aeroportos, de Caxambu e Viçosa, foram citados como desafiadores pelo relevo montanhoso e problemas de visualização e sinalização. O de Viçosa se situa entre morros do Vale do Rio Turvo e já foi diretamente atingido por incêndios florestais. Em setembro de 2020, o fogo queimou área de 18 hectares a apenas 90 metros da pista (essa mesma área também ardeu em 2016) e outra de 7ha, a 770 metros da cabeceira 35. Em julho de 2018, o fogo que se iniciou na BR-356 se alastrou até a cabeceira 35 lançando fumaça para os céus.
Na cabeceira oposta, o obstáculo é um morro de 65 metros de altura que se ergue 300 metros depois da pista sobre a ligação rodoviária entre as rodovias BR-356 e BR-482. A cabeceira 17 é mais livre, sem obstáculos por 1,3 quilômetro após montes com elevação de 79 metros de altura acima do nível da pista. Em Caxambu, as duas cabeceiras ficam próximas a elevações de terreno, dentro dos limites de segurança, mas que podem confundir. Sinalização é considerada precária e asfalto ruim.
Orientação deficiente também é problema
Apesar de 52% das 67 pistas mineiras de aeródromos públicos serem consideradas um desafio para a operação aérea e oito estarem inclusive interditadas, apenas 10 dispõem de uma aparelhagem para pouso por instrumentos chamada IRF. Esses equipamentos permitem pousos e decolagens em condições de baixa visibilidade, noturnos e em outras condições adversas quando os pilotos não conseguem enxergar.
“No aeroporto de Viçosa, por exemplo, deveria ter procedimento de orientação por satélite com qualidade de precisão melhor para evitar os obstáculos, algo que a Anac e o governo precisariam financiar, mas são pouquíssimos os aeródromos com esses procedimentos. Em Minas, opera-se predominantemente pelo visual”, afirma o piloto comercial, instrutor e coordenador do Aeroclube de Uberlândia João Lucas Neiva Lisboa, com mais de 500 horas de voo.
“Um fator que é também obstáculo por comprometer a segurança é a baixa qualidade do pavimento de algumas pistas, que nos obriga a limitar a capacidade de peso da aeronave para pousar e decolar. Ao decolar e pousar também já enfrentei diversos obstáculos que trazem preocupação mesmo, como aeroportos que têm morros próximos às cabeceiras ou lixões que se formam perto e atraem urubus. Essas dificuldades, a gente precisa trazer para um nível aceitável com a busca por conhecimento e o planejamento. Mas, em Minas, se fosse considerar dificuldades e riscos, não se iria a quase nenhum lugar”, afirma Lisboa.
A situação dos aeroportos interditados deve ser vista com seriedade, pois o trabalho da Anac é justamente identificar as estruturas que operam sem condições ideais, segundo Leandro Lopardi, presidente do Aeroclube de Juiz de Fora, piloto executivo com mais de 4 mil horas de voo no Brasil e nos Estados Unidos, instrutor e examinador da Anac. "Não considero que haja um aeroporto extremamente perigoso em Minas Gerais. Quando um aeroporto é um vetor de insegurança e coloca em risco quem está ao seu redor e quem opera no local, a própria Anac age e o interdita", afirma. Ele também destaca como fundamental o trabalho das prefeituras de prevenir e informar sobre incêndios, além de cuidar de cercamentos para que animais e pessoas não invadam as pistas.
O comandante Messias Alan de Magalhães considera que os aeroportos que representam maior desafio para pousos e decolagens requerem maior atenção dos pilotos, especialmente quanto à performance da aeronave, cálculos de peso e balanceamento, conhecimento da localização dos obstáculos e sempre manter uma altitude de segurança para evitar colisões. “As operações são seguras quando realizadas dentro das regras de voo. Boa parte dos obstáculos estão em informações mapeadas e disponíveis para os pilotos. Por exemplo: o aeródromo de Poços de Caldas possui oito obstáculos e temos suas coordenadas, altura e altitude. Sete são torres de alta-tensão. A altitude do aeródromo é de 1.261 metros e nessa época do ano, com a chegada do período chuvoso, o piloto necessita ficar atento às informações meteorológicas disponíveis. Tudo isso é de extrema relevância para o plano de voo”, indica.
Investimento
A Secretaria de Estado de Infraestrutura e Mobilidade (Seinfra) informou que, no momento, investe na estrutura e operação do Aeródromo de Santana do Paraíso e que está previsto, ainda este ano, um edital para estudos e projeto básico do Aeroporto Regional do Vale do Aço. "Desde 2002, o estado de Minas Gerais já investiu aproximadamente R$ 390 milhões, dos quais R$ 60 milhões foram oriundos do governo federal, em 29 aeródromos (entre os quais o de Viçosa)". A secretaria informou, ainda, estar focada no fortalecimento da aviação regional e participar nas tomadas de decisão em relação aos investimentos da União nos aeródromos públicos localizados em Minas Gerais.
A reportagem do Estado de Minas procurou as prefeituras citadas e a de Teófilo Otoni não retornou os questionamentos sobre o aeroporto. A Prefeitura de Viçosa ficou de enviar considerações sobre os problemas, mas até o fechamento desta edição nada foi respondido. A Prefeitura de Caxambu foi procurada, mas não indicou um representante para responder aos questionamentos.
Relevo e sinalização
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