As certidões de nascimento de Carlos* e Laura*, de três e um ano de idade, indicam Rondonópolis, no Estado de Mato Grosso, como a cidade em que ambos vieram ao mundo. Apesar disso, há poucas semanas, as duas crianças brasileiras foram deportadas pelo governo dos Estados Unidos para o Haiti, país de origem de seus pais, que moraram por mais de cinco anos no Brasil.
A deportação foi o ponto final de uma viagem de migração que incluiu passagens por mais de uma dezena de países, feitas de ônibus e a pé, em meio à fome e à violência.
"Na Colômbia, o homem me apontou a pistola, mas eu falei que a gente não tinha dinheiro, a gente não tem nada, e ele liberou a gente pra seguir", relata Patrick*, o pai de Carlos e Laura, sobre a passagem pelo perigoso estreito de Darien, trajeto de 100 quilômetros em mata amazônica até o Panamá, que eles levaram 14 dias para percorrer.
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Depois de atravessar o Panamá, a Costa Rica, a Nicarágua, Honduras e Guatemala, a família até tentou se estabelecer no México.
"Ali não tem serviço, tentei trabalhar, mas não tem como". Patrick acreditava que a chegada a Del Rio, no Texas, significaria o início de uma nova vida - com emprego garantido e salário em dólar - o que permitiria sustentar a família e enviar remessas a parentes que ainda vivem no país caribenho. Não foi o que aconteceu. A família inteira foi detida pelo controle de fronteiras dos EUA.
"Foram quatro dias na cadeia. Para as crianças só deram leite e água, não deram comida. Dormia no chão frio. Um dia, às 4 da manhã, (os guardas) chamaram dizendo que iam liberar a gente, mas colocaram no avião e mandaram pra cá. Pra quê? O Haiti não tem nem presidente", afirma Patrick*, que antes de partir do Brasil ganhava R$ 1,2 mil para desossar carne bovina em um frigorífico no centro-oeste do país e agora diz não ter dinheiro nem para as fraldas de sua bebê.
O relato de Patrick sobre as condições de tratamento por autoridades americanas coincide com o de outros migrantes haitianos na mesma condição. Fotos de guardas de fronteira montados em cavalos avançando sobre os viajantes rodaram o mundo e causaram constrangimento ao governo de Joe Biden, que ordenou a suspensão da atuação da cavalaria no trabalho com migrantes.
Repatriação de 84 crianças
Os dois filhos de Patrick são parte do contingente de 84 crianças de nacionalidade brasileira que, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), foram deportadas nas últimas semanas pelos EUA para o Haiti, em meio às mais de 8 mil expulsões que o governo americano promoveu após a chegada em massa de haitianos à fronteira.
Os EUA vivem uma crise migratória histórica: apenas no ano fiscal de 2021, mais de 1,7 milhão de pessoas foram apreendidas por agentes americanos na fronteira com o México. Diante do fluxo, o governo Biden colocou em prática a regra de expulsão sumária de migrantes criada pela gestão de Donald Trump, a propósito da pandemia de covid-19. Com o dispositivo, os EUA sequer deram aos haitianos a chance de pedir asilo ou refúgio.
Autoridades americanas ouvidas reservadamente pela BBC explicaram que a gestão Biden levou em conta o princípio da manutenção da unidade familiar e a nacionalidade dos pais no momento de definir o destino dos deportados - inclusive em casos em que os filhos tivessem cidadania diferente da de seus responsáveis.
Por isso, o governo brasileiro não foi informado de antemão pelos americanos sobre a deportação de crianças brasileiras para o Haiti. O Itamaraty informou à BBC News Brasil que desconhecia a decisão dos americanos de remeter menores brasileiros ao país caribenho e nenhum dos consulados do país nos EUA chegou a prestar assistência a essas crianças.
"Está muito evidenciado que existe uma política americana de deportação em massa de crianças e que isso não acontece para o Brasil e sim para o Haiti. O que é relevante e fundamental é que o Brasil intensifique o trabalho consular para que essas crianças não sofram deportação indevida. Se elas forem expulsas dos EUA, que sejam enviadas ao Brasil. E que o país dê assistência para trazer de volta ao Brasil aqueles que foram enviados ao Haiti", afirmou o defensor público da União João Chaves, especialista em migração, que requereu a repatriação imediata das crianças ao Itamaraty.
Dentro do órgão de relações exteriores brasileiro, a repatriação dessas crianças brasileiras se converteu em prioridade zero. A expectativa é que as primeiras famílias, que já possuem a documentação correta, comecem a retornar ao Brasil em até dez dias. Outras podem demorar mais a embarcar, já que nem todas possuem documentos que comprovem a nacionalidade das crianças.
Falta ao Itamaraty ainda determinar como será feito o custeio da repatriação. Por lei, o Brasil pode bancar os custos de viagens dos menores brasileiros, mas não poderia financiar as passagens de seus pais, que são haitianos. "Fomos informados desses problemas e vamos avaliar com o Itamaraty se a Câmara poderia pagar a volta dos pais, como poderíamos viabilizar isso", afirmou o Deputado João Carlos Gurgel (PSL - RJ), que, depois de o caso ter sido revelado em reportagem da BBC News Brasil, passou a acompanhar o drama dessas crianças.
Outra opção seria contar com a ajuda de organismos internacionais, como a própria OIM, que já atuou em parceria com o Itamaraty em repatriações que envolviam cidadãos brasileiros e estrangeiros, ou, mais remotamente, com uma aeronave das Forças Armadas para o transporte.
Haiti: um país em colapso
Os responsáveis por ao menos dez crianças brasileiras deportadas ao país caribenho já fizeram contato com a Embaixada Brasileira em Porto Príncipe, a capital haitiana, em busca de documentos e de informações sobre como voltar ao Brasil.
"Eu não tenho um centavo, se tivesse, eu pagava pra gente voltar pro Brasil agora mesmo", afirma Patrick, que pretende se apresentar à Embaixada em Porto Príncipe para pedir ajuda. Ele passou alguns dias em uma casa emprestada por parentes na favela de Cité Soleil, mas nos últimos dias levou sua família para a cidade de Gonaives, porque "estava muito perigoso continuar em Porto Príncipe".
"Não há dúvida de que, se tiverem essa opção, a maior parte dentre essas 84 famílias vão querer retornar ao Brasil", disse à BBC News Brasil Giuseppe Loprete, chefe da missão da OIM no Haiti.
Isso porque o Haiti vive um surto de sequestros - foram mais de cem apenas em outubro - em meio a uma sangrenta disputa de poder entre gangues que tem gerado tiroteios urbanos e matado dezenas de civis.
Na semana passada, 17 missionários americanos foram sequestrados por um desses grupos armados, que pediram US$ 17 milhões em resgate. A força policial haitiana não têm condições de conter a situação e a enorme insegurança afugentou do país a ajuda internacional.
A já complexa situação do Haiti se agravou depois que o presidente do país, Jovenel Moise, foi assassinado em 7 de julho, lançando o governo em disputas de poder e crises de governabilidade. Pouco mais de um mês depois, um terremoto de grande intensidade atingiu a ilha - deixando mais de dois mil mortos. Os escombros deixados pelo terremoto acabaram inundados poucos dias mais tarde pela tempestade tropical Grace.
"O Haiti enfrenta muitas camadas de crise: a pobreza histórica, uma sequência de terremotos devastadores, a violência de gangues. E essas crianças e suas famílias chegam aqui nesse contexto, e com uma bagagem de traumas da jornada de migração. Uma delas me contou que, no começo da travessia do estreito de Darien, sentia medo ao ver cadáveres. No final da jornada, no entanto, ela já tinha visto tantos, que tinha se tornado algo comum pra ela", afirmou à BBC News Brasil Ndiaga Seck, chefe de comunicação da Unicef em Porto Príncipe, uma das poucas organizações que seguem atuando no Haiti e prestando assistência aos deportados, como a família de Patrick.
1,7 mil crianças brasileiro-haitianas no México
Mesmo se acontecer como o esperado, a repatriação das 84 crianças hoje já deportadas para o Haiti pode não significar o fim do drama. Isso porque o Itamaraty já rastreou outras 1,7 mil crianças brasileiras, filhas de haitianos que viviam no Brasil, que estão nesse momento em território mexicano. E embora quase todas tenham feito pedidos de refúgio no México, as autoridades brasileiras sabem que a intenção dessas famílias é cruzar a fronteira dos EUA assim que a oportunidade surgir.
Ao menos desde o início de 2021, milhares de haitianos que viviam no Brasil têm deixado o país em meio à crise econômica e à desvalorização do real, que praticamente inviabilizaram as remessas dos migrantes às famílias no país caribenho.
Há um mês o governo dos EUA tem pressionado o Brasil a receber de volta haitianos que possuíssem residência ou visto humanitário no país e que tenham sido encontrados no México ou na fronteira com os EUA.
Ao menos 429 dos 8 mil haitianos recém deportados pelos EUA ao Haiti estão nessa situação. Não há, no entanto, uma definição sobre se o Brasil aceitará o retorno deles.
Essa semana, o secretário de estado americano Antony Blinken voltou a pedir por isso ao chanceler brasileiro Carlos França. No Twitter, Blinken deixou claro o recado: "Gerenciar a migração em nosso hemisfério é uma responsabilidade compartilhada. Conversei com o Ministro de Relações Exteriores do Brasil, Carlos França, sobre formas de promover a migração ordeira, segura e humana".
*O nome dos entrevistados foi alterado para garantir sua privacidade.
Colaborou Will Grant, enviado da BBC a Porto Príncipe
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