R$ 21,69. Esse foi o preço da liberdade da empregada doméstica desempregada R.S., 41 anos, presa sob a acusação de ter furtado duas garrafas de 600ml de refrigerante, dois pacotes de macarrão instantâneo e suco em pó de um supermercado da zona sul de São Paulo, em 29 de setembro. Solta na última quarta-feira (13), após uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a mãe solo de cinco filhos só teve apenas uma justificativa ao ser abordada pela Polícia Militar: “Roubei porque estava com fome”.
Sem emprego, com crianças com idades de 2, 3, 6, 8 e 16 anos, R. é vítima da pobreza que se disseminou no país junto com a pandemia de covid-19. Com a crise econômica provocada pelo novo coronavírus, quase 20 milhões de brasileiros dizem passar 24 horas ou mais sem ter o que comer. O dado é do estudo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Pessan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).
No STJ, o ministro Joel Ilan Paciornik acolheu os argumentos da Defensoria Pública de São Paulo, segundo os quais a mulher tinha cometido um “furto famélico”. Para o relator, a lesão ínfima ao bem jurídico e o estado de necessidade da mulher não justificam o prosseguimento do inquérito policial.
Para Rafael Muneratti, defensor público do Estado de SP, a história não termina aí. “Ela foi solta, era o que todo mundo queria, mas o problema dela não está resolvido. Ela vai sair da prisão e ainda tem cinco filhos para criar, quatro deles são menores de idade. E ela precisa alimentá-los todos os dias", disse Muneratti, em entrevista à BBC. Ele atuou diretamente no caso depois que o processo chegou a Brasília.
Falha do Estado
Diversas ações de furto famélico chegam a instâncias superiores da Justiça brasileira. Desde 2004, há um entendimento do Supremo Tribunal Federal de que casos como esse devem ser arquivados, seguindo o princípio da insignificância.
A norma, que não é obrigatória, orienta juízes a desconsiderar casos em que o valor do furto é tão irrisório que não causa prejuízo à vítima do crime. Comida, sucata, produtos de higiene pessoal e pequenas quantias em dinheiro, por exemplo, são desconsiderados pela Justiça.
O caso de R.S. não é o único no país. Em 2015, no Distrito Federal, o eletricista M.F.L. foi preso após tentar furtar carne de um mercado para alimentar o filho de 12 anos. Na avaliação de especialistas, o Estado falha em não oferecer auxílio para que as pessoas em vulnerabilidade social consigam ter uma vida digna. “O Estado falhou com aquela pessoa porque ela não está inscrita em nenhum programa social e não consegue trabalho. Ela não tem meios para sair dessa situação de vulnerabilidade, e é esse tipo de pessoa que o Estado deveria dar suporte”, ressalta o advogado constitucionalista e cientista político Nauê Bernardo de Azevedo.
(Colaborou Bernardo Lima, estagiário sob a supervisão de Carlos Alexandre de Souza)