O número de brasileiros acima dos 60 anos deve mais do que dobrar até 2050, passando de 24 milhões para 64 milhões, segundo projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, a população brasileira deve parar de crescer até 2047, devido à baixa taxa de fecundidade. E é nesse cenário de inversão da pirâmide etária, que a profissão de cuidador tem encontrado espaço para crescer. Dentre 2,6 mil profissões pesquisadas, o ofício foi o que mais se expandiu entre os anos de 2007 e 2017, atingindo aumento de 547%, de acordo com dados da Confederação Nacional de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Uma pesquisa do Instituto Lado a Lado pela Vida (LAL) e da Veja Saúde mostra a realidade de parte dos cuidadores do país. O levantamento reuniu dados, por meio de formulário on-line, de 2.534 cuidadores (2.047 familiares e 487 profissionais) de todas as regiões do Brasil. Entre os participantes, 60% têm, pelo menos, 50 anos — e um terço deles têm 60 anos ou mais.
Mesmo com aumento vertiginoso da classe laboral, contudo, esses profissionais ainda enfrentam desafios em meio à alta informalidade. Em 2019, o projeto de lei que visava regulamentar a categoria foi integralmente vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. O texto definia, entre outras atribuições, que cuidadores deveriam ter no mínimo 18 anos, ensino fundamental completo e curso de qualificação na área.
Segundo Ana Lúcia Marques de Souza, psicanalista e gestora gerontológica, “a não regulamentação dá margem para uma zona cinzenta de trabalho informal. Os cuidadores, hoje, são auxiliares e técnicos de enfermagem que não conseguem trabalho em instituições hospitalares ou homecare. Mas, principalmente, a empregada doméstica que assume essa posição sem nem perceber”.
A ex-cuidadora ressalta, ainda, que essa empregada é colocada em uma tripla função. “Ela sai da periferia com uma jornada em sua própria casa, muitas vezes sendo mãe solo, para lidar com seu trabalho de doméstica e, além de tudo, com o cuidado do paciente. Ela se torna cuidadora e sequer é reconhecida por isso”, pontua.
Em um duplo desamparo, com o idoso isolado em casa e a empregada também isolada e desvalorizada, ambos se encontram em uma situação de abandono velado. “Nesse contexto, o cuidador costuma fazer um vínculo único de afeto com aquele paciente, o que, muitas vezes, o adoece e o aprisiona, porque ele passa a não viver mais sua a realidade, mas, sim, a do idoso. Quando esse paciente morre, o cuidador vive um luto não autorizado, não consentido e que não tem lugar de escuta e de cuidado no processo”, explica Ana Lúcia.
Daniela Jones, fundadora da Said Rio, empresa agenciadora de cuidadores, conta que as funções do profissional são restritas, e que isso deve sempre estar claro. “Os cuidadores cuidam de tudo relacionado ao paciente e apenas isso. Alimentação, limpeza do ambiente do paciente, controle de remédios e acompanhamento em consultas e passeios, por exemplo. Esse profissional não está lá para fazer faxina. Às vezes, o cliente confunde e contrata alguém pensando que ele servirá a casa inteira”, exemplifica.
Resistência
Trabalhando na área há mais de 10 anos, Júlio César, 47 anos, conta que um dos maiores desafios da profissão é quando “o paciente precisa de nós por estar muito doente, mas sua mente, que também está doente, não aceita a nossa ajuda”.
Ivone Cardoso, 38 anos, atua como cuidadora há dois. Assim como Júlio, ela enxerga na falta de confiança por parte do paciente o principal obstáculo da carreira. “É um desafio diário, mas a adaptação do idoso a um profissional estranho no seu ambiente familiar é o principal. Além de cuidados com as medicações e com a higiene corporal e bucal porque, às vezes, não querem fazer de acordo com o protocolo do cuidador”, detalha. Por outro lado, diz Ivone, quando conseguem se adaptar aos poucos, os pacientes “tornam-se carinhosos e nos contam muitas histórias lindas de vida”.
O levantamento Cuidadores do Brasil, do Lado a Lado Pela Vida, também revelou dados sobre impacto na saúde emocional e física desses profissionais. Cerca de 48% dos entrevistados disseram sofrer com estresse e 20% têm insônia. Também são comuns relatos de dores e lesões por esforço repetitivo (LER).
*Estagiários sob a supervisão de Andreia Castro
Reflexos da pandemia
Em audiência pública da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados, no mês passado, representantes da profissão reivindicaram mais medidas para valorização da atividade. Para eles, é importante delimitar as funções do cuidador, garantir direitos e evitar baixos salários e jornadas excessivas. Os participantes da reunião afirmaram que a pandemia trouxe diversas dificuldades para o setor. Como trabalham com idosos, pessoas com deficiência e outras com limitações temporárias, muitos perderam o emprego, uma vez que as famílias queriam que eles evitassem o deslocamento no transporte coletivo e dormissem no trabalho. “Na pandemia, nós enxergamos uma diminuição de trabalho. As famílias dos pacientes ficaram com medo, porque o cuidador vai e volta de transporte público e os clientes ficaram com receio”, lamenta Daniela Jones, fundadora da Said Rio, empresa agenciadora de cuidadores.