Assim como a operadora Prevent Senior, investigada na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID-19 por conduta antiética e anticientífica , o sistema Unimed, maior experiência cooperativista na área da saúde em todo o mundo, coleciona denúncias de distribuição do kit COVID, com medicamentos como cloroquina, azitromicina e ivermectina. Todos comprovadamente ineficazes contra a COVID-19. Ao menos quatro unidades da rede disponibilizaram os fármacos gratuitamente a profissionais de saúde e clientes: as Unimeds de Brusque (SC), Belém (PA), Fortaleza (CE) e Natal (RN).
Mostradas de forma esparsa pela imprensa ao longo da pandemia, imagens dos kits e de receituários timbrados com os logotipos das cooperativas voltaram a circular nas redes sociais esta semana, por ocasião das revelações da CPI. Os posts cobram a ampliação das investigações conduzidas pelo Congresso Nacional, já que o escândalo envolvendo Prevent Sênior soa como a ponta de um iceberg.
A Unimed Brasil, representante institucional do sistema, alega que o uso do kit COVID nunca foi uma diretriz nacional e ressalta que as cooperativas regionais são independentes entre si. Essas empresas, por sua vez, amparam suas condutas no Parecer CFM 04/2020, de 17/03/2020, que estabelece total autonomia médica para prescrição de medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina para o tratamento da COVID-19, agora foco de ação da Defensoria Pública da União (DPU).
A postura é semelhante entre associações e conselhos profissionais dos estados em que as operadoras atuam. Especialistas em bioética, contudo, alertam para o fato de que a indicação do kit ineficaz constitui séria violação do código de ética médica, da legislação brasileira, além de tratados internacionais de direitos humanos .
Presente
Na Unimed da cidade de Brusque, em Santa Catarina, o kit COVID era distribuído aos médicos profissionais de saúde credenciados em uma caixa de presente. O embrulho contendo hidroxicloroquina, ivermectina, vitamina D e zinco quelado foi enviado aos cooperados em julho do ano passado. O material acompanhava uma espécie de circular com instruções de prescrição. “A hidroxicloroquina deve ser tomada durante uma refeição ou com um copo de leite”, ensinava o documento.
Na ocasião, a operadora, que reúne clientes de ao menos sete municípios, justificou que “oportunizou a profilaxia aos profissionais que atuam na linha de frente e também aos médicos cooperados”. Questionada pelo Estado de Minas sobre a atual conduta, a cooperativa modificou a versão e disse que os remédios foram direcionados no momento de pico da pandemia somente aos colaboradores “que demonstraram interesse exclusivamente para uso próprio”.
Drive thru
Em meados de maio de 2020, a Unimed Belém distribuiu cloroquina, azitromicina e ivermectina a pacientes com COVID-19 via drive-thru na capital paraense. Na época, a associação de cloroquina e azitromicina já havia sido, inclusive, contraindicada pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (Niaid) dos EUA, devido a riscos cardíacos. Imagens de filas de carros nos pontos em que as drogas eram fornecidas ainda circulam nas redes sociais.
Naquele momento, a empresa divulgou notas à imprensa defendendo que a iniciativa visava ajudar os conveniados com dificuldade de adquirir as medicações e que não se tratava de uma “política normal”. Procurada pelo EM a operadora, que atende clientes de 10 municípios paraenses, agora, argumenta que “não houve distribuição de tratamentos e muito menos de remédios de forma indiscriminada”.
Também em meados de maio, a Unimed Fortaleza, que atua em 24 cidades do Ceará, distribuiu 30 mil kits com cloroquina e ivermectina a seus mais de 300 mil conveniados. Clientes da empresa chegaram a relatar que foram avisados da disponibilidade dos compostos via WhatsApp. Assim como a cooperativa de Belém, a unidade alegou, na ocasião, que a ação tinha por objetivo dar à clientela “acesso aos medicamentos”, já que a substância estaria em falta nas farmácias.
Nesta semana, negou ao EM a confecção de kits, mas admitiu ao EM ter disponibilizado as drogas aos clientes “apenas mediante receituário médico de controle especial”. “A entrega dessa medicação foi encerrada em 2021”, diz, em nota. Na Unimed de Natal (RN), com área de abrangência em todo o estado do Rio Grande do Norte, a distribuição cloroquina e ivermectina aos beneficiários foi anunciada no próprio site do plano , em 22 de maio de 2020, mediante apresentação de receituário médico. Procurada, a operadora diz que “oportunizou, em 2020, aos clientes com prescrição médica e que assinaram Termo de Esclarecimento, acesso à medicação em falta no mercado”.
Após mais de um ano de comprovação de ineficácia do tratamento precoce contra a COVID-19 e reiterados alertas de pesquisadores e entidades internacionais sobre os riscos associados à terapêuticas, entidades médicas permanece em silêncio sobre o tema. O Estado de Minas solicitou um parecer sobre a questão às associações médicas de Santa Catarina, do Pará, do Ceará e do Rio Grande do Norte, onde as Unimeds citadas estão instaladas. Todas preferiram não se pronunciar.
Responsabilidade
“A verdade é que ninguém está isento da responsabilidade sobre a prescrição dos kits COVID. Apenas o paciente. Este, realmente, é vítima”, pondera o infectologista Dirceu Greco, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). Ele explica que o argumento da liberdade de prescrição off label – quando certo medicamento é receitado para uma finalidade distinta do que consta na bula do produto – não se aplica no caso da cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, entre outros normalmente inclusos no chamado kit COVID.
“Para que a prescrição off label seja usada em conformidade com a ética médica, é preciso haja algum benefício plausível desse tratamento. E já ficou claríssimo em diversos estudos que não há”, diz o médico.
“Este era, aliás, o principal argumento do CFM ao defender a autonomia do médico para prescrever o tratamento precoce: ‘não há evidências concretas de que ele não funcione’. mas essas evidências já existem há mais de um ano”, complementa o especialista.
Greco ressalta que a ineficácia dos medicamentos foi constatada por meio ensaios clínicos randomizados e duplo-cego, que balizaram as recomendações das principais associações médicas e Instituições mundiais, incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS), Sociedade Norte-Americana de Doenças Infecciosas (IDSA), Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH), Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) e Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ESCMID).
“Além de não serem eficazes contra a COVID, essas drogas também geram uma falsa confiança no paciente, de que ele está protegido. Logo, ele deixa de usar máscara e, por vezes, até recusa a vacina. O tratamento precoce pode, assim, até matar de forma indireta”, diz o infectologista.
De acordo com o especialista, o tratamento precoce viola não só o Código de Ética Médica, como a própria Constituição Federal, pactos internacionais na seara dos direitos humanos ratificados pelo Brasil e o próprio Juramento de Hipócrates, realizado na colação de grau de todo médico.
“Todos esses instrumentos mencionam o respeito à vulnerabilidade humana, à integridade individual e ao uso do conhecimento científico para maximização de benefícios às pessoas tratadas. É apenas dentro desses princípios que o médico tem liberdade para prescrever. Todo profissional e toda instituição ligada à medicina sabe disso e, portanto, pode sim, ser responsabilizada quando cruza a linha da ética”, reflete.