Violência

Militares condenados a 30 anos de prisão

Em votação apertada, conselho da Justiça Militar pune oito integrantes do Exército que mataram, com centenas de disparos, um músico e um catador em 2019, no Rio de Janeiro. Especialistas criticam política de segurança

» João Vitor Tavarez*
postado em 14/10/2021 23:38
 (crédito: Divulgação)
(crédito: Divulgação)

A Justiça Militar condenou oito integrantes do Exército a cerca de 30 anos de prisão pela morte de dois civis. O caso refere-se ao fuzilamento do músico Evaldo dos Santos Rosa, que era negro, e do catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, durante uma ação do Exército no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro, em 2019.

Por 3 votos a 2, após uma sessão de mais de 15 horas, o conselho de juízes da Justiça Militar da União, com sede no Rio, condenou os militares por homicídio qualificado. As penas foram superiores a 28 anos de reclusão. Além disso, houve responsabilização por tentativa de homicídio contra o sogro do músico Evaldo, Sérgio Gonçalves de Araújo.

A maior pena foi imposta ao tenente Ítalo da Silva Nunes, que comandava a ação: 31 anos e 6 meses de reclusão. Os outros sete soldados foram condenados a 28 anos de reclusão e excluídos do quadro do Exército. Isso porque não são oficiais e suas penas foram acima de dois anos, conforme prevê o Código Penal Militar. Além de serem expulsos das Forças Armadas, os condenados terão de cumprir a prisão em regime fechado. Mas continuarão em liberdade até o julgamento de recursos.

Em abril de 2019, Evaldo levava a família para um chá de bebê, quando militares dispararam 257 tiros de fuzil contra o veículo do músico durante uma ação de patrulhamento do Exército na área da Vila Militar em Guadalupe, Zona Norte do Rio.

O veículo do músico morto foi atingido por 62 disparos de fuzil e pistola. O catador Luciano Macedo, que estava próximo do local com seu carrinho, foi baleado pelos militares ao tentar socorrer o artista. Com ferimentos no braço direito e nas costas, Luciano morreu 11 dias depois do episódio.

Outros quatro militares também integravam o grupo. No entanto, foram absolvidos por falta de provas de que participaram da ação. Conforme a Justiça Militar da União, “um vídeo, exames residuográficos, um relatório de ensaio e pareceres técnicos estão em consonância com a informação de que estes (militares) não efetuaram disparos”.

A sessão de ontem foi realizada pelos votos de cinco magistrados do Conselho Especial de Justiça: a juíza federal substituta da Justiça Militar Mariana Aquino, que atuou como presidente do conselho; e quatro oficiais do Exército, que exerceram a função de juízes militares.

Reação desproporcional
Conforme o voto da juíza, a versão dos acusados — de que atiraram em resposta aos disparos feitos por Luciano (apontado como autor de um roubo momentos antes da tragédia) — está fora de contexto diante das provas.

“Com efeito, o assalto já havia cessado, Evaldo estava dentro do carro, inconsciente; não foram encontradas armas com as vítimas, tampouco a viatura Marruá foi alvejada; ademais, as testemunhas relataram que apenas os militares atiraram, o que pôde ser comprovado, também, em face das perícias e do vídeo gravado. Assim, forçoso convir que não há que se falar em legítima defesa, uma vez que não houve agressão injusta. Da mesma forma, impossível o reconhecimento da excludente da legítima defesa putativa quando não presentes os elementos necessários à sua caracterização (sequer há ameaça de agressão. O assalto já havia cessado)”, declarou a magistrada.

Ainda de acordo com a juíza, “a lei não impõe, em tempo de paz, a quem quer que seja, o dever de matar. Ainda, importante destacar que as regras de engajamento — que são diretrizes que balizam a conduta dos militares e o uso da força de forma progressiva, proporcional e pautada nos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e legalidade — não foram observadas no caso em tela; ao revés, agiu-se de forma diametralmente oposta àquela que se espera de militares com vasta experiência operacional”.

O conselho de juízes considerou não haver configuração de crime de omissão de socorro, outra acusação aos militares, “visto que o relato de testemunhas confirmou que o tenente ligou solicitando que a Polícia Militar acionasse os órgãos competentes para o socorro”.

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Negros são maioria dos assassinados

Dados do 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que negros representam 78,9% dos mortos pela polícia em 2020. Em 2019, o índice foi de 79,1%. O levantamento foi elaborado a partir da base de dados oficiais, disponibilizados pelos estados, sobre as mortes decorrentes de ação policial. O estudo também revela que no ano passado, quase todas as vítimas foram homens (98,4% do total) e jovens, 76,2%, tinham entre 12 e 29 anos.

Quando só resta a brutalidade estatal

 (crédito: AF Rodrigues/Agência Pública)
crédito: AF Rodrigues/Agência Pública

Segundo Leonardo Sant’Anna, especialista em segurança pública, a morte de Evaldo Rosa é reflexo de uma realidade onde o Estado se mostra ausente. Incapaz de atender cidadãos com ações sociais, de educação ou emprego, o poder público se faz presente, muitas vezes, por meio da coerção, com consequências trágicas. “Quando existem falhas, provoca-se uma fragilidade em pessoas não contempladas por esses fatores, previstos, inclusive, na Constituição Federal. Esses itens são essenciais para que se tenha um bom convívio social”, observa o especialista.

“Além da recorrência de tais conflitos, quando falamos do envolvimento de vidas negras, há um histórico nacional de pessoas dessa etnia não contempladas por itens sociais. É um histórico que vem desde o período pós-libertação de escravos, onde essa parcela da população não teve acesso à educação, a recursos econômicos e de moradia. São décadas e décadas dessa corrosão étnica, cuja incorreção recai na comunidade negra”, completa.

Para Sant’Anna, a decisão evidencia como é complexa a utilização de Forças Armadas no combate ao crime nos grandes centros urbanos. “Sabemos que o nível de capacitação de um profissional das Forças Armadas é distinto. E não tem correlação com segurança pública. Há uma grande confusão que recai nesse tipo de tragédia (morte de Evaldo Rosa e Luciano Macedo), sobretudo no momento em que se coloca pessoas não preparadas para realizar atividades de proteção à população, mas que na verdade são capacitadas para atividades de guerra”.

O especialista questiona até a responsabilidade dos comandantes militares envolvidos nas operações de pacificação. “Resta saber se serão chamados à responsabilidade jurídica ou se apenas um grupo de jovens com fuzil vão ser condenados a quase 30 anos”, indagou.

Para o advogado e militante do Movimento Negro Unificado (MNU), Marcelo Dias, a condenação dos militares é fundamental para “inibir os atos de violação de direitos, principalmente do povo negro, pobre e periférico, por parte dos agentes do Estado”. (Colaborou: Bernardo Lima*)

* Estagiários sob a supervisão de Carlos Alexandre de Souza

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